EDITORIAL O GLOBO
São um feito os dois impeachments, sem rupturas, num continente cuja trajetória é pontilhada de acidentes institucionais e autoritários, à direita e à esquerda, tendo como ligação, entre esses dois campos que se opõem, o nacionalismo, muitas vezes turbinado pelo populismo, como tem sido na tragédia do chavismo e foi na debacle do lulopetismo, com a mais grave desestabilização da economia brasileira na República.
É de notável ineditismo, na América Latina, o fato de esses incidentes institucionais no país serem contornados sem as rupturas clássicas na região. É tema de debates e estudos de cientistas políticos a incapacidade de o Brasil, no arranjo inaugurado na Nova República, não permitir maiorias estáveis no Congresso, para dar governabilidade aos inquilinos do Planalto. A discussão continuará.
O PT resolveu literalmente comprar a base parlamentar, para viabilizar um projeto de eternização no poder. Para isso, assaltou a Petrobras, outras empresas públicas e se enredou em um novelo do qual está longe de se livrar nos tribunais. Sempre guiado pelo máxima dos “fins que justificam os meios”.
A razão do impeachment de Dilma é de outra natureza. Restou provado na acusação encaminhada à Câmara por Hélio Bicudo, procurador que combateu o Esquadrão da Morte em São Paulo, fundador dissidente do PT; os advogados Miguel Reali Jr., ex-ministro da Justiça, na gestão FH, e Janaína Paschoal, professora do Largo de São Francisco, simbólica Faculdade de Direito da USP, que Dilma cometeu crimes de responsabilidade de ordem fiscal e orçamentária.
Foi diferente do que aconteceu com Collor, condenado no Senado por quebra de decoro, devido a denúncias de corrupção, mas inocentado no Supremo. Tudo também dentro das regras legais. Pois o julgamento no Congresso é de cunho político. No processo contra Dilma, não há acusações de corrupção, mas crimes que têm a ver com a visão ideológica lulopetista, com o tempero brizolista da ex-presidente. Não passou despercebido que, ao se defender no Senado, Dilma Rousseff usou tática do guia Leonel Brizola: nunca responder as perguntas e falar o que quiser.
Dilma se converteu à responsabilidade fiscal muito tarde, ao vir a dizer, só nesta semana, no Senado, ante o cadafalso, que lamentava o PT não haver votado para aprovar a LRF. No poder, atropelou-a sem piedade. Dilma não fez qualquer menção, por óbvio, mas o partido pelo qual se elegeu, o PT, também não assinou a Constituição de 1988. Louve-se a coerência: a legenda sempre avança contra a Carta e a LRF. Ao propor “Constituintes exclusivas”, por exemplo.
Dilma e os “desenvolvimentistas” não gostam da responsabilidade fiscal. Consideram-na “neoliberal”, um obstáculo conservador ao ativismo fiscal do Estado, esta uma obsessão da esquerda latino-americana do pós-Guerra. Mas todos precisam cumpri-las, a Carta e a LRF, com as respectivas normas decorrentes
Dilma perdeu o cargo por sectarismo ideológico e voluntarismo, por achar que “vontade política” é o que resolve problemas no governo. Algo de sabor stalinista. Ao ir contra leis, a Carta e princípios técnico inamovíveis, cometeu suicídio. Collor sofreu impeachment devido à ética; Dilma, por investir contra pilares institucionais que o Brasil começou a construir no Plano Real, a partir de 1994, com Itamar e Fernando Henrique Cardoso.
Eduardo Cunha é, na “narrativa” lulopetista, peça central de um onírico complô em que se misturam corruptos temerosos da Lava-Jato, defensores do ex-presidente da Câmara e “inimigos das conquistas sociais”. E, claro, a “mídia”.
Mas foram a obsessão com o ativismo estatal e gastos sem medidas, maquiados por técnicas da “contabilidade criativa”, que construíram a enorme crise fiscal, visível a todos a partir de 2015, quando afloraram os números reais. Ou próximos deles. Assim, edificou as bases do seu enforcamento legal. Mas nem tudo é pura ideologia. Houve também forte dose de esperteza, a fim de esconder o lixo debaixo do tapete, marquetear um país inexistente na propaganda política de 2014, e ganhar a reeleição em rotundo estelionato. Depois, veio o tarifaço, porque o governo congelou combustíveis, energia elétrica etc., para represar de maneira artificial a inflação, a fim de faturar a reeleição.
Lulopetistas devem ter aprendido com Ulysses Guimarães e José Sarney quando, em 1986, fizeram o mesmo para o seu PMDB ganhar as eleições no fim daquele ano, nos estertores do Cruzado. Elegeram 22 governadores. Dias depois, executaram os ajustes necessários, com liberação de preços e tarifas. O filme passou mais uma vez em 2015, com Dilma. Mas não chegou ao fim, porque as instituições republicanas estão solidificadas.
A edição de decretos de gastos sem aprovação do Congresso e as “pedaladas” — deixar instituições financeiras pagar despesas do Tesouro, numa operação ilegal de crédito à União — demoliram Dilma. O conjunto da obra de malfeitos fiscais é de enormes proporções. Eles vêm desde o final do segundo governo Lula, mas bastaram os crimes cometidos em 2015, conforme limitação imposta pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, ao aceitar o pedido de impeachment, para derrotar Dilma e o lulopetismo de pedigree brizolista.
O saldo desses empréstimos ilegais concedidos à União, por decisão do Planalto, pelo Banco do Brasil, Caixa Econômica, BNDES e até o FGTS chegou em 2015 a pouco mais de R$ 50 bilhões, cifra gigantesca. O Brasil havia voltado ao passado, à antessala da pré-hiperinflação, quando o BB se financiava diretamente no Tesouro e governadores ordenhavam seus bancos estaduais como casas da moeda privadas. Costuma-se dizer que a estabilização econômica permitida pelo Plano Real se tornou patrimônio da sociedade. O impeachment de Dilma é prova cabal de que isso é verdade. A partir de agora, qualquer governante que pense em atalhos à margem da lei, no manejo orçamentário, precisará refletir sobre as implicações de seus atos. O mesmo vale para delírios no campo político-institucional. O fortalecimento não é apenas das cláusulas da responsabilidade fiscal, mas da Constituição como um todo, para desaconselhar de vez projetos bolivarianos como o do lulopetismo. Serve de aviso geral à nação.
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