Valentina de Botas:
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Com uma proposta modesta para evitar que os filhos se tornem um fardo para a sociedade e para os pais nas famílias mais pobres, acabar com a fome destas, evitar que as crianças pobres se tornem criminosos ou se prostituam, Jonathan Swift chocou quem entendeu e quem não entendeu sua sugestão de que os bebês de um ano de idade e os maiorzinhos mais tenros nascidos na miséria virassem uma opção alimentar dos famintos na Irlanda do século 17 que vivia um período social tristonho. Algumas pessoas que entenderam o sarcasmo corrosivo do panfleto ficaram chocadas porque a crueza de Swift as fez transitar do absurdo da proposta para a reflexão quanto à gravidade da situação descrita; outras porque acharam demais brincar com algo assim, numa conveniente deformação da percepção que dá mais relevo à abordagem do real do que a ele. Aquelas que não entenderam a ironia ficaram estacionadas no absurdo da proposta, desviando-se do drama real e preferiram combater o mensageiro.
Especialistas do desenvolvimento cognitivo situam o início da apreensão da ironia entre os 5 e os 7 anos de idade. Claro que a sofisticação da ironia como recurso linguístico apresenta uma complexidade que será traduzida conforme a robustez e a maturação intelectuais, amplamente variáveis entre os indivíduos, mas a estupidez dos irlandeses impermeáveis à ironia de Swift e a sisudez dos brasileiros nos últimos 10 anos exemplificam que a percepção da graça e a produção do humor também estão à mercê do social.
Entre nós, o politicamente correto empobreceu o pensamento com a consequente deterioração do humor a tal ponto que um texto irônico tem exigido o aviso “atenção, este texto contém ironias”, na melancólica constatação de que fazer e entender humor ou ironia são competências em que a era da mediocridade deixou sequelas longevas. Lula e Dilma, cada um a seu modo, sabotaram o debate público com falsas questões e soluções ilusórias. Ele, com o chulismo e a truculência do conjunto de suas falas, disfarçadas de uma informalidade com pretensa comicidade mediante metáforas de graça e pertinência miseráveis; ela, com a carranca soldada à alma, tentava fazer incivilidade e parvoíce parecerem competência.
Os dois embusteiros, figuras autoritárias e, portanto, paranoicas, impregnaram tudo com o mau humor característico de governantes que desconhecem o salutar e inteligente exercício da autoironia também porque se dão muita importância. Ora, pouca coisa é mais ridícula e prato cheio para o humor do que gente que se dá muita importância, o que se aplica também a países. A adesão dos humoristas a favor e a detestável patrulha politicamente correta, numa realidade de degradação econômica, intelectual e moral, tornam a ironia e o riso ainda mais necessários – e, contraditoriamente, possíveis – como forma de resistência.
O grande texto de J.R.Guzzo que constata mais uma mazela da era lulopetista não nos convida a rir o riso dos idiotas ou dos levianos, cantar o canto da cigarra alheia ao inverno que chegou ou a celebrar a tal malemolência de difusa brasilidade ineficaz em reduzir um povo inteiro e heterogêneo a um único atributo; ele nos convida a refletir sobre o modo como estamos olhando para tudo isso.
Sem a tragédia síria, mas com problemas multiplicados da Irlanda de 400 anos atrás que ultrapassam a controvérsia entre bolacha e biscoito, é lúcido admitir a perda de certo jeito de sorrir que tínhamos, como diz o poeta, mas, levando a lucidez às últimas consequências, percebamos que nem todo riso é alegria e nem toda lágrima é tristeza.
extraídadecolunadeaugustonunesfeiralivreveja
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