J.R. Guzzo:
Publicado na edição impressa de VEJA
Procura-se desesperadamente nos dias de
hoje, em tudo o que de alguma maneira diz respeito à vida pública, o
senso de humor brasileiro. Onde teria ido parar? A capacidade de rir, de
si próprios e da vida, que sempre fez tão bem aos brasileiros, anda
sumida nestes tempos azedos em que vivemos. Eis aí mais um belo pedaço
do patrimônio nacional que foi roubado neste país. Junto com os bilhões
saqueados desde janeiro de 2003 da Petrobras, dos fundos de pensão, dos
Correios, da Caixa Econômica Federal, do Ministério dos Transportes e de
quase tudo o que tem alguma coisa a ver com governo, levaram também a
graça do nosso cotidiano. Bem-vindos, leitores, ao Brasil do
impeachment — e da divisão que está ensinando os cidadãos a odiarem uns
aos outros por causa de política. Ria-se de quase tudo no Brasil. Hoje
praticamente não se ri mais de nada. Tudo é terrivelmente sério. O país
parece ter descoberto, de repente, quanto gosta de emoções como o
rancor, o despeito ou a mágoa — ou, mais alarmante ainda, quanto é fácil
tratar como inimigo aquele que apenas tem uma opinião diferente. Não
gostamos mais de rir. Agora preferimos insultar. Perdeu-se a habilitação
para perceber o ridículo. Fora, Dilma. Fora, Temer. Fora isso. Fora
aquilo. Estamos ficando um país chatíssimo.
No caso de Dilma ainda vai. A presidente
deposta tem um talento raro na arte de se tornar malquista — e isso
ajuda muito, claro, no culto geral ao mau humor que existe em relação a
ela e seu falecido governo. Mas Michel Temer? Nunca houve a menor
necessidade de ficar com raiva de Michel Temer. Em mais de quarenta anos
de política o novo presidente nada fez para merecer paixões — e muito
menos ódio. Ao contrário, é o tipo clássico do perfeito “gente fina”. Um
país que consegue ficar com ódio de Michel Temer realmente decidiu
viver de péssimo humor. Pior: um país que se queixa porque uma figura
como a ex-presidente foi embora parece ter tomado a opção de não rir
nunca mais na vida — sim, pois, se até isso é motivo para choradeira,
onde alguém conseguirá encontrar algum motivo para achar graça em alguma
coisa? É uma grande pena que o mundo esteja assim, porque senso de
humor faz falta. E faz falta porque não é, no fundo, uma questão de rir
das coisas. É uma questão de entender como elas são. Na vida prática, o
senso de humor acaba funcionando como a manifestação mais básica do
bom-senso; aliás, trata-se possivelmente da mesma coisa. Como seria
viável, sem a ajuda do riso, achar que algo faz sentido no nosso dia a
dia? Viveríamos num mundo perfeitamente insuportável.
Parece que o Brasil criado nesses treze anos
de corrupção — e no trauma que tem sido o combate legal para tirar a
chave do cofre da turma que controlava o governo da República — resolveu
ignorar o bom-senso na discussão pública. É virtualmente impossível,
por exemplo, ler do começo ao fim um jornal, uma revista ou uma página
de noticiário eletrônico e ter vontade de dar um único e apagado sorriso
ao longo de toda a leitura; é tudo desespero, choro e ranger de dentes.
O mesmo se pode dizer dos telejornais ou dos programas informativos do
rádio. Não se encontra um mínimo de humor nem mesmo entre os humoristas —
que, no entanto, teriam a obrigação profissional de tentar fazer as
pessoas rir um pouco. A maioria dos comunicadores dá uma importância
ilimitada às próprias virtudes. Eles usam a soberba para compensar-se
pelo muito que imaginam ser e não são; esquecem o senso de humor que
deveria compensá-los pelo que são na realidade. Tudo é gravíssimo, mesmo
fora da vida pública. O porre espetacular de um nadador americano na
Olimpíada do Rio de Janeiro, com certeza uma das melhores histórias de
bêbado dos últimos tempos, nunca chegou a ser piada; foi, do primeiro ao
último minuto, um insulto mortal ao Brasil. Parece, em suma, que há
brasileiros demais ativamente empenhados em ser infelizes. Dedicam tanto
tempo e energia a essa tarefa que ficam sem tempo e energia para
aproveitar um pouco melhor a vida.
Os leitores do romance O Nome da Rosa
se lembram do tenebroso Frei Jorge e do pensamento que serve de
alicerce para a sua vida — e, muito pior ainda, que ele quer impor à
vida dos outros. O mais maligno de todos os pecados é o riso, acredita
esse grande caçador de pecadores. Muda a face das pessoas, afasta a sua
mente da virtude e as aproxima do macaco. Ele se esquece, como observa
Frei William, que na verdade o homem é o único ser vivo capaz de rir. O
Brasil de hoje tem Frei Jorge demais circulando por aí.
extraídadecolunadeaugustonunesfeiralivreveja
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