Nelson Motta: O Globo
Nunca imaginei ouvir Sarney dizendo “abaixo a ditadura”. Não disse, mas
afirmou, solene, na gravação de Sérgio Machado, que estamos sob a pior
das ditaduras: a da Justiça.
Para ele, pior do que a ditadura da força militar, a do proletariado que
desmoralizou o comunismo, a religiosa dos aiatolás é a ditadura da
Justiça, que, fazendo cumprir a lei sem distinção de classe social,
investiga e enjaula seus colegas e amigos, respeitando os ritos
processuais e assegurando a defesa dos acusados, que podem recorrer das
decisões.
Qualquer ditadura, por definição, é abominável, porque detém todo o
poder, tira a liberdade e os direitos do cidadão, faz suas próprias
leis, não pode ser contestada por ninguém nem por outro poder do Estado.
Embora seja um oximoro na retórica sarneysiana, a ideia de uma ditadura
da Justiça, se tal coisa fosse possível, seria bem recebida: diante
dela todos são iguais.
Enquanto não se inventa uma ditadura da Bondade, ou do Bem, a da Justiça
é a mais viável. Seria uma ditadura original, que, fazendo respeitar a
lei e o estado de direito, contribuiria decisivamente para o exercício
da democracia — que, paradoxalmente, é o oposto de uma ditadura.
O bom da ditadura da Justiça é que ela não poderia ser dominada pelo
governo, nem pelos militares, pelos religiosos, pelos ideológicos, nem
pelos políticos. É independente, não se origina nas fraudes e conchavos
eleitorais, deve impor a força do Estado no cumprimento das leis. Se não
for dura, não é ditadura, deve aplicar penas pesadas a criminosos que,
se forem condenados em segunda instância por um colegiado, não podem
mais recorrer em liberdade, o que garantia a impunidade dos ricos e
poderosos em recursos infindáveis até a prescrição final.
Na ditadura da Justiça não há nomeações politicas, seus integrantes
enfrentam concursos rigorosos para entrar na carreira, os juízes dos
tribunais superiores são sabatinados pelo Senado. E o Conselho Nacional
de Justiça investiga e pune os juízes corruptos. Uma ditadura em que
quem não deve não teme. Mas quem deve, treme.
É pena, mas é tudo só um pesadelo de Sarney.
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