Mary Zaydan: Com Blog do Ricardo Noblat - O Globo
Com 105 condenações que somam mais de 1.140 anos de prisão, a Lava-Jato
faz o Brasil acreditar que é possível trancafiar endinheirados e
poderosos. Nas celas de Curitiba estão ex-ministros e tesoureiros do PT,
empreiteiros, doleiros. Mas não consegue pegar políticos com mandato,
detentores de foro especial por prerrogativa de função, vulgo foro
privilegiado. Uma excrecência que beneficia mais de 22 mil pessoas – do
presidente da República e seus ministros a governadores e prefeitos,
além de senadores e deputados, magistrados – algo em torno de 16 mil. E
até vereadores e delegados, em alguns tipos de crimes.
O foro especial não é uma invenção tupiniquim. Existe em vários lugares
do mundo. Mas quase sempre limitado a um tipo de processo – normalmente
correlato à função exercida pelo beneficiado, portanto administrativo.
“O Brasil é um dos países que mais tem pessoas com prerrogativa de foro,
só se compara à Venezuela e à Espanha, mas lá o foro é apenas para os
crimes funcionais”, assegura o procurador da Lava-Jato Diogo Castor de
Mattos.
Por aqui, o privilégio vale para tudo: do estelionato aos maus tratos,
da roubalheira ao homicídio. A única exceção expressa no parágrafo 1º do
artigo 53 da Constituição de 1988 é ser pego com a boca na botija, em
“flagrante de crime inafiançável”.
Sendo assim, ainda que o Supremo Tribunal Federal tivesse disposição e
dias de 80 horas, seria preciso muito fôlego dos 11 ministros para dar
conta de um contingente desse tamanho. Só pela agenda sufocada dos
ministros, o réu ou investigado ganha tempo – muito tempo - quando o
processo fica no âmbito do STF, desejo máximo da unanimidade dos
advogados de defesa.
No caso da Lava-Jato, a quantidade de procedimentos do Supremo impressiona. De acordo com o hotsite criado pelo Ministério Público Federal para informar sobre a operação, em pouco mais de dois anos o STF já autorizou 139 investigações, instaurou 59 inquéritos, com 38 investigados.
Mas o fato é que, à exceção do ex-senador Delcídio do Amaral – preso em
flagrante não por roubar, mas por interferir nas investigações –, nem
julgamento nem punição chegaram aos políticos que detêm mandato.
Em 2007, ano em que o STF acatou a denúncia dos 40 envolvidos no
Mensalão, o ministro Celso de Mello fez defesa contundente do fim do
foro de elite. “Minha proposta é um pouco radical: a supressão pura e
simples de todas as hipóteses constitucionais de prerrogativa de foro em
matéria criminal”, disse ao jornal Folha de S. Paulo. Como a suspensão
do privilégio depende de aprovação congressual, sugeriu que a Corte
avançasse, pelo menos, em limitar a abrangência dos crimes.
Nada aconteceu. Nem no STF, nem no Congresso, onde dezenas de propostas
sobre o tema tramitam, algumas delas há mais de uma década. Duas semanas
atrás, no bojo da cobrança do MPF em torno da emenda popular sobre as
10 medidas contra a corrupção, uma delas, a PEC 470, de 2005, ameaçou
sair da gaveta. Ficou só na ameaça.
Disse a ministra Cármen Lúcia: “No Brasil, a gente engole o elefante,
mas engasga com a formiga, consegue fazer o impeachment (da presidente
da República), mas não consegue tirar o vereador da cidade pequena que
todo mundo sabe que roubou ou fez coisa errada”.
Isso é gravíssimo. Mas o problema é maior e ainda pior do que o expresso
pela figura de linguagem da magistrada que assume a presidência do STF
em setembro.
O Brasil não consegue desratizar nem dedetizar. Ao contrário, mantem
privilégios que perpetuam a multiplicação de roedores e insetos,
predadores que não só o engasgam, mas o intoxicam. Perto disso, engolir
elefantes é fácil.
extraídaderota2014blogspot
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