por José Casado O Globo
Nunca houve um fim de verão como este. Na chegada das águas de março,
assiste-se à perplexidade da elite política brasileira com o inédito e
incômodo desafio de provar sua inocência.
Neste 1º de março estão sob investigação em tribunais e delegacias de
polícia: a presidente Dilma Rousseff e o vice Michel Temer; três
ex-presidentes da República (Lula, Fernando Henrique Cardoso e Fernando
Collor de Mello); os presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da
Câmara, Eduardo Cunha, e mais 25% dos senadores e deputados federais.
As acusações têm natureza diversa. Assim, não é recomendável comparar os
casos de Dilma e Collor, nem o de Lula e Fernando Henrique. Em telas de
Botticelli ou Dalí, por exemplo, eles habitariam diferentes círculos,
vales e esferas do inferno — da luxúria à fraude, no caos ordenado e
bem-humorado de Dante Alighieri em “Divina comédia”.
Em Brasília, amanhã, o Supremo Tribunal Federal começa a decidir se o
presidente da Câmara, Eduardo Cunha, será processado por corrupção e
lavagem de dinheiro subtraído dos cofres da Petrobras, a maior entre
companhias estatais e de capital aberto no país.
A tendência é Cunha virar réu e, nesse caso, o Supremo precisará decidir
sobre o seu afastamento da presidência da Câmara. Ele é o primeiro na
linha de sucessão presidencial, depois do vice-presidente Michel Temer.
Se o STF afastar Cunha, haverá eleição imediata do substituto na Câmara,
porque “a República não pode ficar banguela na linha sucessória”,
lembra o deputado Miro Teixeira (Rede-RJ).
Também amanhã abre-se uma etapa decisiva em Curitiba, 1.400 quilômetros
ao sul do Planalto. O juiz federal Sérgio Moro começa a escrever a
sentença sobre o caso de Marcelo Odebrecht, acionista e ex-presidente, e
de diretores do Grupo Odebrecht, líder entre as empreiteiras de obras
públicas. São acusados de corrupção, lavagem de dinheiro e financiamento
ilegal de campanhas eleitorais para obter R$ 7 bilhões em contratos com
a Petrobras.
No próximo dia 17, completam-se dois anos de investigação sobre as
estranhas transações desse condomínio de poder, que partilhava o
Orçamento da União, planos de investimentos das empresas estatais e
acesso privilegiado às reservas financeiras líquidas dos fundos de
pensão e bancos públicos, como o BNDES.
O inquérito levou, até agora, 179 pessoas ao banco dos réus. Dissolveu
uma era de delírios político-empresariais. E lançou no limbo uma
presidente recém-reeleita. Hoje ela anuncia o centésimo ministro em
cinco anos. Na melhor hipótese, seu governo deve atravessar o próximo
triênio arrastando correntes entre o Palácio da Alvorada e a Praça dos
Três Poderes, em Brasília.
Ironia da história: as 84 sentenças já proferidas, cujas penas somam 825
anos de prisão, foram escritas numa corte da outrora Nossa Senhora da
Luz dos Pinhais de Curitiba, vilarejo formado à volta de um pelourinho
plantado três séculos e meio atrás pelo sertanista Gabriel de Lara. Era o
símbolo de sua autoridade na defesa dos interesses do Erário português
sobre a lavra de ouro.
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