por Fernando Gabeira O Estado de S.Paulo
Aqui onde estou, no interior do Amapá, as coisas me parecem confusas.
Creio que parecem confusas em toda parte. Mas é sempre difícil de
alcançá-las quando as conexões são pobres.
Rodrigo Janot deverá apresentar uma segunda denúncia contra Michel
Temer. Teremos de ouvir tudo de novo, cada um com seu voto. Espero que
seja menos dramático e que o mercado não leve tão a sério um enredo
previsível. Afinal, a economia segue adiante.
Não conheço a delação de Lúcio Funaro. Sei apenas que é o réu mais
violento no nível verbal: ameaça literalmente comer o fígado de
adversários. Funaro já enrolou a Justiça uma vez. Deve ser uma pessoa
cheia de truques, como parecem ser os irmãos Batista.
Janot afirmou que, enquanto houver bambu, vai lançar suas flechas. É uma
afirmação quantitativa. Sabemos que a última flecha tem de ser mais
certeira e eficaz. Isso se levarmos a sério a analogia com os índios.
Não tenho conhecimentos antropológicos para afirmar, apenas suponho que
os índios não gostem de errar a última flecha, porque depois dela ou o
bicho pega ou o adversário ataca.
A delação da JBS é um dos pontos mais vulneráveis da Lava Jato, embora
nada tenha que ver com o trabalho em Curitiba. Foi na esteira do acordo
com Joesley que os adversários da operação bateram pesado.
Mesmo quem se coloca abertamente a favor do desmonte do grande esquema
de corrupção no Brasil custa a entender não só a liberdade de Joesley
Batista, mas também o fato de os procuradores não terem mandado periciar
o gravador antes de desfechar o processo.
No front da Lava Jato no Rio de Janeiro avançou, finalmente, o tema
denunciado pelo Le Monde há alguns meses: a escolha do Rio para a sede
da Olimpíada foi comprada. E reaparece um personagem chamado Rei Arthur.
Tive de falar dele em 2010. Suas empresas faturavam bilhões durante o
governo Sérgio Cabral. Ele mandava nas escolhas do governo para
contratar serviços. Daí o apelido Rei Arthur.
O que aconteceu com os Batista pode ser uma lição. Rei Arthur andou pelo
Rio e escapou para Miami, onde vive. Ele certamente vai usar ao máximo
sua presença nos EUA para dificultar a prisão. Quando preso, Rei Arthur
já deverá saber com antecedência o que falar e o que esconder - a velha
tática de oferecer os anéis para salvar os dedos.
A quadrilha montada por Sérgio Cabral, com inúmeras ramificações, tinha
alcance internacional, comprou uma Olimpíada. Seu combate se deu com a
ajuda decisiva de investigadores franceses.
Os donos da JBS mostraram, também, alto nível de audácia, na medida em
que tinham a chave do BNDES, projetavam um crescimento internacional,
enquanto no País compravam quase 2 mil políticos. Era inverossímil esta
história de que decidiram colaborar porque tiveram uma espécie de
epifania e descobriram que trilhavam o caminho do crime.
É importante que a Lava Jato não aceite os anéis para salvar os dedos,
não por uma vocação repressiva. Os adversários são fortes. A história da
repressão aos tráfico de drogas na Colômbia está cheia de cooptação dos
investigadores pelo crime. Os próprios repressores transformavam-se em
chefes de segurança dos esquemas do tráfico. Não eram simplesmente
subornados, mas contratados pelo seu conhecimento técnico.
No campo político, no Brasil, não houve nenhuma reforma. O máximo
possível é acabar com coligações proporcionais e criar a cláusula de
barreira. Os passos dados não neutralizam a tendência em não votar em
quem tenha mandato. E isso não é garantia nem de uma modesta renovação.
Muitas pessoas novas entraram no Congresso e, ao cabo de algum tempo,
estavam falando a velha linguagem. É o que acontece quando as regras do
jogo não mudam.
Aqui, no interior do Amapá, observei algo comum em outros pontos do
Brasil. Em quem confiar?, perguntam uns aos outros ao verem a sucessão
de escândalos. A ideia de que a lei vale para todos foi fortalecida com a
prisão de alguns poderosos. Não pode haver brechas nela, caso
contrário, o desânimo será ainda maior.
Janot precisa avaliar o impacto da delação premiada de Joesley Batista.
Afinal, valeu a pena? Quantas informações importantes ele deu? Até que
ponto as investigações seriam incapazes de chegar a elas sem prêmio a
Joesley?
Possivelmente, a última flecha de Janot ele vai arrancar de seu próprio corpo. Nada de excepcional numa longa batalha.
Pode ser que avance para compreender que errou ao não periciar as gravações, mas encontrar nelas o caminho da reparação.
O quadro geral é mais inquietante quando a desconfiança transborda o
universo da política e se expande pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
As mais recentes pesquisas já apontam nessa direção. Certamente, foram
influenciadas pela atuação de Gilmar Mendes, mas não se esgotam nele.
A iniciativa de Cármen Lúcia de pedir uma rápida e esclarecedora
investigação sobre referência ao STF nas gravações de Joesley vai numa
boa direção. No entanto, ela deve saber que a crise na dimensão da
Justiça é corrosiva.
Quanto a Geddel Vieira Lima, ele foi solto e voltou para Salvador. As
pessoas estão, agora, estupefatas com a descoberta de milhões de reais
num apartamento que ele usava. O Estado não tinha dinheiro para a
tornozeleira eletrônica de Geddel. Geddel tinha dinheiro para comprar
todas as tornozeleiras eletrônicas do Brasil. Por isso é que vale a pena
considerar que estamos diante de quadrilhas extremamente capazes e
ousadas, não só prontas para assaltar, mas também dispostas a dar uma
volta na repressão.
Tantos inocentes, tantos arrependidos, tantos falsos colaboradores - a
competência dos bandidos brasileiros é medalha de ouro em qualquer
Olimpíada em que tenha a corrupção como modalidade.
Não será fácil vencê-los, embora a Lava Jato tenha alcançado um nível
superior e seja o melhor instrumento que encontramos para isso em toda a
nossa história.
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