por Maria Cristina Pinotti O Estado de São Paulo
Será que todos os que, alegremente, se inspiram no script que levou ao fracasso a Operação Mani Pulite têm consciência do que aconteceu na Itália desde então? Como é sabido, a exemplo do que ocorre hoje no Brasil, a Mani Pulite desvendou, no início dos anos 1990, a existência de corrupção sistêmica na Itália. E assim como as tentativas em curso aqui, as investigações lá foram abortadas pela reação dos políticos denunciados, por meio de uma verdadeira legalização da prática da corrupção no país, com mudanças nas leis que perduram até hoje. Não por acaso, dentre os países desenvolvidos a Itália exibe hoje o maior índice de corrupção e o pior desempenho econômico, com o PIB estagnado no nível do ano 2000.
Na avaliação de Nadia Fiorino e Emma Galli, no livro La Corruzione in Italia: Un’analise econômica, de 2013, “(o fenômeno da corrupção) mostra uma tendência decrescente na sequência da operação Mani Pulite em 1993-1994, para reaparecer sob forma ainda mais agressiva, acompanhada de uma espécie de mutação ‘antropológica’ da sociedade na qual o cidadão dá mostras de haver se habituado com a relação de insana cumplicidade que frequentemente se instaura entre a política, a administração pública e as empresas”. Como diz Piercamillo Davigo, a espécie predada (os corruptos) se fortaleceu. Neste artigo trato de dois aspectos importantes e inter-relacionados decorrentes, em grande parte, da decisão de conviver com a corrupção: a ineficácia do sistema judiciário e os impactos da corrupção sobre a economia italiana.
Desde a contribuição de Gary Becker, em 1968, sabe-se que a corrupção é um crime racional, do início ao fim. No início a racionalidade determina a escolha do alvo e dos meios para obter as vantagens e no final manifesta-se nas providências para escolher as melhores formas de esconder os recursos, que podem chegar até a sofisticadas técnicas de lavagem e ocultação de dinheiro em paraísos fiscais. Logo, as penas para os crimes de corrupção devem ser vistas não como se fossem fruto de vendetas pessoais ou de uma sanha moralista de magistrados, como querem alguns, mas simplesmente como a maneira apropriada de dar o incentivo correto, elevando o custo da prática da corrupção. Pressupõe-se, portanto, que as leis sejam adequadas e a Justiça, eficaz.
Atuando na direção oposta, a reação do sistema político à Mani Pulite ampliou a probabilidade de prescrições e retirou penas por crimes de corrupção, provocando o aumento da impunidade e a falta de confiança na Justiça, como mostra pesquisa da Eurobarometer, de 2016. A percepção de independência das Cortes e dos juízes é hoje muito ruim para 25% da população na Itália, ante 10% na França e 4% na Alemanha. No extremo oposto, essa independência é considerada boa ou muito boa por 25% da população na Itália, ante 54% na França e 69% na Alemanha. Dentre os motivos para a falta de independência, em respostas não excludentes, encontra-se a interferência ou pressão do governo e de políticos, para 42% dos italianos (29% dos franceses e 14% dos alemães). Ainda, segundo o EU Justice Scoreboard de 2016, entre 2012 e 2014 o tempo médio necessário para resolver casos litigiosos civis e comerciais em primeira instância era de 577 dias na Itália (melhor, apenas, do que em Malta e Chipre), ante 322 dias na França e 189 dias na Alemanha. Esses números atestam a baixa credibilidade e efetividade do sistema judiciário italiano.
O abrandamento das leis contra a corrupção foi vendido à população como a maneira eficaz de promover o crescimento econômico. Afinal, diziam, a corrupção faz a economia funcionar. Mas ninguém avisou que faz funcionar muito mal. A taxa de juros havia desabado com a entrada do país na zona do euro e investir parecia a melhor escolha. Berlusconi lançou um ambicioso plano de investimentos em infraestrutura a partir de 2001, prevendo a construção de 120 grandes obras, que resultou num verdadeiro “manual de más condutas” e de desperdício de recursos públicos. Colocou no novo superministério da Infraestrutura um empresário do setor de projetos de obras de engenharia, para quem “era preciso conviver com a Máfia e com a Camorra”. O Senado aprovou uma lei (Legge Obiettivo) para grandes obras de interesse nacional, permitindo ignorar leis ordinárias, isentar de concorrência e de avaliação de impacto ambiental as grandes obras públicas, ampliando as chances de ocorrência de corrupção.
Dinheiro público foi gasto no pagamento de projetos de obras que nunca saíram do papel. Dentre as realizadas, várias foram superdimensionadas, como trechos de trens de alta velocidade que precisariam ter o triplo de usuários para serem rentáveis, considerando que seu custo é três vezes maior que na Espanha e na França. Mario Draghi, ainda ministro das Finanças, apontava que, embora os gastos públicos na Itália fossem superiores aos da França, da Alemanha e do Reino Unido nas três últimas décadas, a ausência de avaliação de custos e benefícios não garantia que os projetos atendessem às necessidades do país. Falhas na seleção de obras e de seus executores aumentavam os riscos de corrupção e conluio, levando a renegociações frequentes e ineficientes de contratos. Com isso, entre 1990 e 2009, de todos os projetos de Parcerias Público-Privadas registrados na Europa, apenas 2% foram na Itália. Apesar do claro diagnóstico feito pelo atual presidente do Banco Central Europeu, a Itália continua a aceitar que a corrupção contamine todas as suas decisões econômicas, favorecendo interesses privados em detrimento do bem-estar comum, reduzindo a produtividade e o crescimento econômico.
Espero que o Brasil não repita esse erro e persista na tarefa, ainda que árdua, de reduzir a corrupção. Instituições sólidas e uma estrutura adequada de incentivos são o único caminho conhecido para alcançar o desenvolvimento econômico e social.
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