Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 22 de junho de 2016

"Lava-Jato no esporte"

 Dorrit Harazim: O Globo

Putin talvez tenha considerado impensável a hipótese de uma olimpíada sem a participação russa no atletismo



Bem que a 204ª reunião do Conselho da Federação Mundial de Atletismo (IAAF), sexta feira em Viena, estava anunciada como sessão extraordinária. É o que ela foi, quando 25 de seus 27 membros mantiveram o veto à participação da equipe de atletismo da Rússia na Olimpíada do Rio. Em 120 anos de história moderna, os Jogos conheceram vários tipos de banimentos e boicotes, jamais a exclusão de uma equipe.
A Rússia, como se sabe, é um potentado em provas de pista e campo. Conquistou 18 medalhas nos Jogos de Londres-2012, sendo oito de ouro. Mas é também, como vem sendo comprovado há anos, uma superpotência em matéria de doping institucionalizado, e por isso não foi mais possível à entidade que rege o esporte evitar a inédita sanção.
Na origem de tudo está o jovem casal Vitaly e Yulyia Stepanov. Ele era funcionário da Agência Antidoping Russa. Ela, uma meio-fundista de elite e, portanto, intocável na estrutura esportiva do país. Yulyia tinha farto acesso a doping, com a anuência de técnicos e dirigentes até se lesionar, cair na malha fina, cumprir dois anos de afastamento das pistas e simular um retorno à rotina de antes. Só que, incentivada pelo marido, ela aderiu à cruzada de denunciar a máquina russa de fabricar campeões.
Durante quatro anos, o casal juntou material e gravou depoimentos de ex-atletas comprovando o sistemático esquema estatal de burla, e o fazia chegar às mãos da Agencia Mundial Antidoping (Wada), sempre correndo grande risco. Durante quatro anos, a Wada não se mexeu. “É preciso ter provas concretas, confiáveis, para poder fazer algo”, esquivou-se mais tarde o presidente da entidade, Sir Craig Reedie.
Numa manhã de novembro de 2014, desmotivados, Yulyia e Vitaly embarcaram no aeroporto de Sheremetyevo como se fossem para Praga. Levavam o bebê Robert e, na bagagem, munição para derrubar uma potência esportiva. Dez dias depois, iria ao ar pela emissora alemã ARD o devastador documentário de Hajo Seppelt que escancarou a conivência do governo russo no fornecimento de substâncias proibidas a seus atletas enquanto acobertava os testes de doping positivos
Obrigada a se mexer, a Wada criou uma comissão independente para investigar as denúncias. O relatório por ela divulgado um ano depois não apenas confirmou as informações do casal Stepanov como abriu todo um baú de malfeitos russos institucionalizados. Deixou de fora, contudo, um maná de irregularidades na natação, ciclismo, biatlo, levantamento de peso e esportes de inverno também apontadas no documentário alemão. Sir Craig alegou não haver necessidade, o que talvez tenha salvo a Rússia de um desfalque ainda maior na Olimpíada.
Foi com o relatório da Wada em mãos que a IAAF decidiu, sete meses atrás, suspender o atletismo russo de competições internacionais e estabeleceu um prazo para que o país implementasse uma série de medidas saneadoras para poder voltar à família olímpica.
Imperial como de hábito, Vladimir Putin talvez tenha considerado impensável a hipótese de uma olimpíada sem a participação russa no atletismo. E por isso fez tudo errado. De um lado, contratou a agência americana Bursin-Marsyrllrt, especializada em apagar incêndios, para levar jornalistas estrangeiros a conhecer a estrutura esportiva do país. Foi um tiro no pé.
Por outro lado, dificultou a tal ponto o trabalho em território russo de agentes estrangeiros da Wada que 736 testes antidoping não puderam ser realizados, por sumiço dos atletas. E 52 dos 455 realizados deram resultado positivo. Uma esportista chegou a oferecer propina aos agentes quando estes detectaram que ela havia camuflado uma amostra de urina limpa em suas partes íntimas.
Em suma, desastre total para um país que queria ser reabilitado.
Para a próxima terça-feira está prevista uma reunião de cúpula em Lausanne que deverá reunir dirigentes do Comitê Olímpico Internacional, das federações esportivas e das entidades nacionais e internacionais antidoping. A pauta — a difícil decisão entre responsabilidade coletiva e justiça individual — dá esperança a alguns dos excluídos de recorrerem até a instancia máxima pelo direito de competir.
Yelena Isinbayeva, a deusa-celebridade do salto com vara, bicampeã olímpica e sete vezes campeã mundial, já soltou faíscas. Em artigo para o “New York Times”, qualifica as denúncias de política de doping sancionada pelo Estado russo como “alegações” e deixa claro que todos os seus 28 recordes mundiais foram batidos fora de casa. Nunca teve um teste com resultado positivo ao longo de 20 anos.
“Por isso, pergunto”, escreve ela, “se alguns atletas russos falharam, por que atletas limpos como eu devem sofrer banimento? Por que não devemos poder competir no Rio contra atletas limpos de outros países?”
Infelizmente, a história do doping está coalhada de exemplos de atletas que escapuliram do flagra durante anos, a começar pelo ciclista voador Lance Armstrong. Não deve ser o caso da extraordinária Yelena.
De todo modo, a questão, no momento, é outra. Trata-se de sinalizar à comunidade esportiva global que este é um ponto de inflexão. Todos têm um papel a desempenhar. Já que o COI formou pela primeira vez um Time Olímpico de Refugiados, com dez atletas vindos de zonas de guerra como símbolo de esperança, tem agora a chance de inovar o conceito e honrar o movimento olímpico.
Yulyia Stepanov, desde que fugiu com o marido para os Estados Unidos, continuou a treinar, tem competido nos 800m e se submete a testes antidoping. Para Dionne Koller, diretora do Centro de Esporte e Direito da Universidade de Baltimore, “seria um escárnio por parte do movimento olímpico negar a chance de participar dos Jogos Olímpicos do Rio a uma atleta que assumiu grandes riscos pessoais pela causa do esporte limpo”.
Koller propõe que o COI também conceda a Yulyia o status de refugiada. Refugiada olímpica.
Grande ideia.
extraídaderota2014blogspot

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