Dorrit Harazim: O Globo
Bem que a 204ª reunião do Conselho da Federação Mundial de Atletismo
(IAAF), sexta feira em Viena, estava anunciada como sessão
extraordinária. É o que ela foi, quando 25 de seus 27 membros mantiveram
o veto à participação da equipe de atletismo da Rússia na Olimpíada do
Rio. Em 120 anos de história moderna, os Jogos conheceram vários tipos
de banimentos e boicotes, jamais a exclusão de uma equipe.
A Rússia, como se sabe, é um potentado em provas de pista e campo.
Conquistou 18 medalhas nos Jogos de Londres-2012, sendo oito de ouro.
Mas é também, como vem sendo comprovado há anos, uma superpotência em
matéria de doping institucionalizado, e por isso não foi mais possível à
entidade que rege o esporte evitar a inédita sanção.
Na origem de tudo está o jovem casal Vitaly e Yulyia Stepanov. Ele era
funcionário da Agência Antidoping Russa. Ela, uma meio-fundista de elite
e, portanto, intocável na estrutura esportiva do país. Yulyia tinha
farto acesso a doping, com a anuência de técnicos e dirigentes até se
lesionar, cair na malha fina, cumprir dois anos de afastamento das
pistas e simular um retorno à rotina de antes. Só que, incentivada pelo
marido, ela aderiu à cruzada de denunciar a máquina russa de fabricar
campeões.
Durante quatro anos, o casal juntou material e gravou depoimentos de
ex-atletas comprovando o sistemático esquema estatal de burla, e o fazia
chegar às mãos da Agencia Mundial Antidoping (Wada), sempre correndo
grande risco. Durante quatro anos, a Wada não se mexeu. “É preciso ter
provas concretas, confiáveis, para poder fazer algo”, esquivou-se mais
tarde o presidente da entidade, Sir Craig Reedie.
Numa manhã de novembro de 2014, desmotivados, Yulyia e Vitaly embarcaram
no aeroporto de Sheremetyevo como se fossem para Praga. Levavam o bebê
Robert e, na bagagem, munição para derrubar uma potência esportiva. Dez
dias depois, iria ao ar pela emissora alemã ARD o devastador
documentário de Hajo Seppelt que escancarou a conivência do governo
russo no fornecimento de substâncias proibidas a seus atletas enquanto
acobertava os testes de doping positivos
Obrigada a se mexer, a Wada criou uma comissão independente para
investigar as denúncias. O relatório por ela divulgado um ano depois não
apenas confirmou as informações do casal Stepanov como abriu todo um
baú de malfeitos russos institucionalizados. Deixou de fora, contudo, um
maná de irregularidades na natação, ciclismo, biatlo, levantamento de
peso e esportes de inverno também apontadas no documentário alemão. Sir
Craig alegou não haver necessidade, o que talvez tenha salvo a Rússia de
um desfalque ainda maior na Olimpíada.
Foi com o relatório da Wada em mãos que a IAAF decidiu, sete meses
atrás, suspender o atletismo russo de competições internacionais e
estabeleceu um prazo para que o país implementasse uma série de medidas
saneadoras para poder voltar à família olímpica.
Imperial como de hábito, Vladimir Putin talvez tenha considerado
impensável a hipótese de uma olimpíada sem a participação russa no
atletismo. E por isso fez tudo errado. De um lado, contratou a agência
americana Bursin-Marsyrllrt, especializada em apagar incêndios, para
levar jornalistas estrangeiros a conhecer a estrutura esportiva do país.
Foi um tiro no pé.
Por outro lado, dificultou a tal ponto o trabalho em território russo de
agentes estrangeiros da Wada que 736 testes antidoping não puderam ser
realizados, por sumiço dos atletas. E 52 dos 455 realizados deram
resultado positivo. Uma esportista chegou a oferecer propina aos agentes
quando estes detectaram que ela havia camuflado uma amostra de urina
limpa em suas partes íntimas.
Em suma, desastre total para um país que queria ser reabilitado.
Para a próxima terça-feira está prevista uma reunião de cúpula em
Lausanne que deverá reunir dirigentes do Comitê Olímpico Internacional,
das federações esportivas e das entidades nacionais e internacionais
antidoping. A pauta — a difícil decisão entre responsabilidade coletiva e
justiça individual — dá esperança a alguns dos excluídos de recorrerem
até a instancia máxima pelo direito de competir.
Yelena Isinbayeva, a deusa-celebridade do salto com vara, bicampeã
olímpica e sete vezes campeã mundial, já soltou faíscas. Em artigo para o
“New York Times”, qualifica as denúncias de política de doping
sancionada pelo Estado russo como “alegações” e deixa claro que todos os
seus 28 recordes mundiais foram batidos fora de casa. Nunca teve um
teste com resultado positivo ao longo de 20 anos.
“Por isso, pergunto”, escreve ela, “se alguns atletas russos falharam,
por que atletas limpos como eu devem sofrer banimento? Por que não
devemos poder competir no Rio contra atletas limpos de outros países?”
Infelizmente, a história do doping está coalhada de exemplos de atletas
que escapuliram do flagra durante anos, a começar pelo ciclista voador
Lance Armstrong. Não deve ser o caso da extraordinária Yelena.
De todo modo, a questão, no momento, é outra. Trata-se de sinalizar à
comunidade esportiva global que este é um ponto de inflexão. Todos têm
um papel a desempenhar. Já que o COI formou pela primeira vez um Time
Olímpico de Refugiados, com dez atletas vindos de zonas de guerra como
símbolo de esperança, tem agora a chance de inovar o conceito e honrar o
movimento olímpico.
Yulyia Stepanov, desde que fugiu com o marido para os Estados Unidos,
continuou a treinar, tem competido nos 800m e se submete a testes
antidoping. Para Dionne Koller, diretora do Centro de Esporte e Direito
da Universidade de Baltimore, “seria um escárnio por parte do movimento
olímpico negar a chance de participar dos Jogos Olímpicos do Rio a uma
atleta que assumiu grandes riscos pessoais pela causa do esporte limpo”.
Koller propõe que o COI também conceda a Yulyia o status de refugiada. Refugiada olímpica.
Grande ideia.
extraídaderota2014blogspot
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