José Casado - O Globo
Com um olho no calendário do impeachment de Dilma Rousseff e outro nos
sinais de agravamento da crise nos caixas da União, de estados e
municípios, que se espraiam pela economia, Michel Temer começou a
perceber que não haverá dia fácil no Palácio do Planalto. (Infográfico: a farra dos governos estaduais)
O vice poderá se tornar titular na segunda quinzena de maio. É para
quando se prevê uma decisão do Senado favorável à abertura de processo
contra a presidente por crime de responsabilidade — a maquiagem das
contas para ocultar despesas de R$ 90 bilhões acima da receita. Dilma
deixaria a Presidência até novembro, quando ocorreria seu julgamento
definitivo. Se derrotada, o vice cumpre o restante do mandato.
Depois de meio século de vida na política, Temer nunca esteve tão perto
do centro do poder e, ao mesmo, tão distante do governo. Não teria tempo
ou margem para errar num ambiente político conturbado, em que cada
brasileiro deve terminar este ano 10% mais pobre do que no ano passado, e
sob o temor de que tudo isso seja apenas o prólogo da crise. Tem
elevada rejeição: 58% dos eleitores apreciariam assistir à sua partida
com Dilma, segundo as pesquisas de opinião.
Expoente de uma geração de líderes políticos desacreditados, o eventual
sucessor tem encontro marcado com a caótica situação financeira do setor
público na segunda quinzena de maio, logo após a primeira votação do
impeachment no Senado.
O caixa dos governos federal, estaduais e municipais foi implodido pela
incúria administrativa: os gastos cresceram numa velocidade muito maior
que a arrecadação de tributos, impulsionada pelos novos impostos na
última década.
O desequilíbrio nas contas conduziu o país a uma recessão inédita. A
arrecadação tributária cai (-8,1% no primeiro trimestre), enquanto as
despesas se mantêm elevadas. Com déficits contínuos, os governos
passaram a adiar pagamentos.
Agora, se tornou real o perigo de calote governamental em série. O risco
foi ampliado pela paralisia do governo e do Congresso, que há meses
dedicam tempo integral ao processo de impedimento da presidente. Essa
preocupação tem permeado as conversas de Temer com economistas de peso
que podem, inclusive, integrar sua equipe no futuro. Ontem, ele se
reuniu com o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles.
COLAPSO
A perspectiva de permanência no imobilismo levou o Tesouro a marcar data
para bloquear o caixa: a partir de terça-feira, 23 de maio, vai deixar
de pagar fornecedores — incluindo os de água, luz e telefone —, com
possibilidade de atrasar salários dos servidores. O aviso foi dado nesta
semana pelo Ministério da Fazenda ao Congresso.
Por ironia, é consequência da aplicação das normas de responsabilidade
fiscal, essência do processo de impeachment em curso. O governo está
obrigado a cumprir as metas de equilíbrio fiscal na programação
orçamentária bimestral. A exigência é do Tribunal de Contas e tem o
objetivo de impedir novas “pedaladas fiscais”.
Para evitar o colapso, um eventual governo Temer precisaria estrear
apresentando ao Congresso um pedido de autorização para triplicar o
déficit orçamentário — de R$ 30 bilhões para R$ 96 bilhões. Dilma pediu
um mês atrás, mas o presidente da Câmara decidiu não votar nada até a
decisão do Senado sobre o impeachment. É o terceiro ano seguido de
déficit governamental. Em 2014 foi de R$ 32,5 bilhões. Ano passado somou
R$ 117 bilhões, recorde que, talvez, seja superado ainda neste primeiro
semestre.
Os sucessivos rombos provocam aumentos substanciais na dívida pública.
Ela equivale, atualmente, a 66% do Produto Interno Bruto. Ou seja, o
país deve R$ 6,6 para cada R$ 10 que é capaz de produzir. Pode
ultrapassar 85% do PIB até 2018. “O desequilíbrio fiscal significa, ao
mesmo tempo, aumento da inflação, juros muito altos, incerteza sobre a
evolução da economia, impostos elevados, pressão cambial e retração do
investimento privado” — repetem documentos do PMDB produzidos para
Temer.
Uma saída emergencial estaria na renegociação das dívidas estaduais com a
União, tema prioritário nos debates do Senado, arena política onde será
decidido o futuro de Temer.
Empenhado em conquistar maioria legislativa, o vice se preocupou em
acenar aos governadores estaduais na peculiar versão da “Carta aos
Brasileiros”, que gravou e divulgou “por acidente” semana passada: “Há
estudos referentes à eventual anistia ou perdão de uma parte das dívidas
e até da revisão dos juros que são pagos pelas unidades federadas”,
disse, acrescentando: “Vamos levar isso adiante. Vamos estudar isso com
muita detença e vamos levar adiante.”
FOLHA DE PAGAMENTO
A situação dos estados piora a cada mês. O problema central não está nas
dívidas com a União, sempre passíveis de renegociação, mas nas folhas
de pagamentos de pessoal.
Entre 2009 e 2015, período marcado por duas eleições, prevaleceu a
negligência da maioria dos governadores nas despesas com servidores e
pessoal terceirizado. De maneira geral, ampliaram as isenções fiscais
aos habituais financiadores de campanhas. Poucos reservaram um décimo
das receitas para investimentos. A maioria optou por endividamento com a
União, e, quase sempre, com uso ineficiente dos créditos subsidiados
dados pelo BNDES.
A incúria foi muito além da imaginação: em 18 casos, os custos da folha
aumentaram entre 31,7% e 69,6% em termos reais. Isto é, acima da
inflação acumulada no período, que foi de 45,3%, na variação do Índice
de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Aconteceu em Rio de Janeiro, Santa
Catarina, Roraima, Tocantins, Piauí, Pará, Mato Grosso do Sul, Mato
Grosso, Minas Gerais, Goiás, Rondônia, Rio Grande do Sul, Maranhão,
Ceará, Espírito Santo, Pernambuco, Paraná e no Distrito Federal.
A gastança foi recorde no Rio. As despesas avançaram 70% à frente da
inflação. A folha saltou de R$ 18,6 bilhões para R$ 31,6 bilhões.
O aumento médio de gastos com pessoal foi de R$ 1,8 bilhão em cada um
dos últimos sete anos. Resultado: o Estado do Rio começou 2016 com um
rombo no caixa de tamanho equivalente a cinco meses de salários do
funcionalismo.
A folha se tornou um sorvedouro dos tributos pagos pelos fluminenses:
para cada R$ 1 de receita líquida própria (descontados os repasses da
União), o Rio gasta R$ 1,10 com pessoal.
Nenhum estado conteve a expansão dos gastos com pessoal nos limites da
inflação, nos últimos sete anos. No conjunto, ampliaram as despesas em
0,5% do Produto Interno Bruto. Isso equivale a R$ 30 bilhões — valor
igual ao da ajuda federal pedida pelos governadores para pagar as
dívidas que vencem neste ano.
Na emergência da crise alguns governadores até fizeram cortes
significativos na folha de pagamentos, extinguindo cargos de chefia, mas
continuaram em dificuldades por causa da abrupta queda na receita.
Aconteceu em Goiás, um dos menos endividados. O estado cortou R$ 1,5
bilhão em despesas com pessoal, mas a arrecadação despencou em R$ 3
bilhões.
— Como chegamos até aqui? Como é que jogamos tudo fora? — desabafou o
economista Marcos Lisboa durante um debate sobre o endividamento dos
estados, na última terça-feira no Senado. Presidente da universidade
Insper e ex-secretário de Política Econômica no primeiro governo Lula,
tem sido procurado com frequência por auxiliares de Michel Temer.
Lisboa é um tipo raro de economista, com mais dúvidas do que certezas.
Não cansa de repeti-las: — Como os estados chegaram aonde chegaram? Para
que servem as nossas instituições? Qual o papel dos tribunais de contas
estaduais? Como se tem uma Lei de Responsabilidade Fiscal que
estabelece limites para o gasto com pessoal e terceirizado não conta?
Todas as respostas, ele acha, conduzem ao “ajuste agora, imediato,
porque será mais caro fazer o acerto daqui para frente”. O problema é o
alto custo político. E, principalmente, a disposição de um eventual
presidente Temer em pagar o preço, por exemplo, de um congelamento de
salários dos servidores, como já combinou com governadores.
extraídaderota2014blogspot
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