FERNANDO GABEIRA - O Estado de S.Paulo
As
coisas andam esquisitas. Ou sempre estiveram, não sei. Dia agradável de
trabalho na Serra da Canastra, revisitei a nascente do São Francisco e vi uma
loba-guará se movendo com liberdade em seu território. De noite sonhei com o
PT. Logo com o PT.
Sentei-me
na cama para entender como os pesadelos do Planalto invadiam meus sonhos na
montanha. Lembrei-me de que no início da noite vira a história de André Vargas
e do doleiro Alberto Youssef na TV, os farmacêuticos do ar que vendiam remédios
dos outros ao Ministério da Saúde. Pensei: esse Vargas é vice, no ano que vem
seria presidente da Câmara dos Deputados. Como foi possível a escalada de um
quadro tão medíocre? A resposta é a obediência, o atributo mais valorizado
pelos dirigentes, antítese de inquietação e criatividade, sempre punidas com o
isolamento.
Vargas
fazia tudo o que o partido queria: pedia controle da imprensa e fazia até o que
o partido aprova, mas não ousa fazer, como o gesto de erguer o punho na visita
do ministro Joaquim Barbosa, do STF, ao Congresso. Em nossa era, esse deputado
rechonchudo, que poderia passar por um burguês tropical, simboliza o resultado
catastrófico da política autoritária de obediência, imposta de cima.
Num
falso laboratório, com o nome fantasia de Labogen (gen é para dar um ar
moderno), Vargas e Youssef tramavam ganhar dinheiro vendendo remédios ao
ministério. O deputado, que ocupava o mais alto cargo do PT na Câmara,
trabalhava para desviar dinheiro da saúde! É um tipo de corrupção que
merece tratamento especial, pois suga recursos e equipamentos destinados a
salvar as pessoas. A corrupção na saúde ajuda a matá-las.
A
catástrofe dessa política autoritária se revela também na escolha de Dilma
Rousseff para suceder a Lula. Sob o argumento de que os quadros políticos
poderiam abrir uma luta fratricida, escolheu-se uma técnica com capacidade de
entender claramente que Lula e o PT fariam sua eleição. A suposição de que o
debate entre candidatos de um mesmo partido seria ameaçador para o governo é
uma tese autoritária. Nos EUA, vários candidatos de um mesmo partido disputam
as primárias. E daí?
Lula
sabia que um quadro político nascido do choque de ideias seria um sucessor com
potencial maior que Dilma para ganhar luz própria. E a visão autoritária de
Lula - sair plantando postes nas eleições, em vez de aceitar que novas pessoas
iluminassem o caminho - contribuiu para a ruína do próprio PT.
Tive
um pesadelo com o PT porque jamais poderia imaginar que chegasse a isso. Os
petistas, aliás, carnavalizaram uma tradição de esquerda. Figuras como André
Vargas erguem os punhos com a maior facilidade, como se estivessem partindo
para a Guerra Civil Espanhola na Disneylândia. E os erguem nos lugares e
circunstâncias mais inadequados, como num momento institucional. Um vice-presidente
não pode comportar-se na Mesa como um militante partidário. O correto é que
tivesse sido destituído do cargo depois daquele punho erguido. Mas o PT e seus
aliados não deixariam o processo correr. Eles são fortes, organizados,
bloqueiam tudo. Será que essa força toda dará conta do que vem por aí?
Estamos
em ano eleitoral e Dilma, nesse cai-cai. É compreensível que as esperanças se
voltem para Lula como salvador de um projeto em ruínas. Mas como salvar o que ele
mesmo arruinou? O esgotamento do projeto do PT é também o de Lula, em que pese
sua força eleitoral. Ele terá de conduzir o barco num ano de tempestades.
Para
começar, essa da Petrobrás, Pasadena e outras saidinhas. O vínculo entre
Youssef, Vargas e a Petrobrás também está sendo investigado pela Polícia
Federal. Mas a relação do doleiro com o governo não deveria passar em branco. Num dos documentos surgidos na
imprensa, fala-se que Youssef estava num delegação oficial brasileira
discutindo negócios em Cuba. Por que um doleiro num delegação oficial? Por que
Cuba?
Muitas
novidades estão aparecendo. Mas essa do André Vargas, homem influente no
partido, um farmacêutico do ar que neste momento deve estar erguendo os punhos
no espelho, ensaiando para ser preso, interrompeu meu sono em São Roque de
Minas com uma clara mensagem: o PT é um pesadelo.
Tenho
amigos que ainda votam no PT porque acham ser preciso impedir a vitória da
direita. Não vejo assim o espectro eleitoral. Há candidatos do centro e da
esquerda. Que importância tem a demarcação rígida de terrenos, se estamos
diante de fatos morais inaceitáveis, como a corrupção na Saúde, o abalo
profundo na Petrobrás, a devastação da nossa vida política?
Cai,
cai, balão, não vou te segurar. Estivemos juntos quando os petistas eram
barbudos e tinham uma bolsa de couro a tiracolo. Mudou o estilo. Agora têm
bochechas e um doleiro a tiracolo. Naquela época já pressentia que não ia dar
certo. Mas não imaginava essa terra arrasada, um descaminho tão triste.
É
um consolo estar nas nascentes do São Francisco, ver as águas descendo para a
Cachoeira Casca Danta: o lindo movimento das águas rolando para sentir a
mudança permanente. Sei que essa é uma ideia antiga, de muitos séculos. Mas
para mim sempre foi verdadeira. É o que importa.
Uma
das grandes ilusões da ditadura militar foi interromper a democracia supondo
que adiante as pessoas votariam com maturidade. A virtude do processo
democrático é precisamente estimular as pessoas a que aprendam por si próprias
e evoluam.
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