A tenista chinesa Li Na sempre foi espirituosa, ao contrário de seus camaradas-atletas menos afeitos a entrevistas coletivas. Mas, depois de vencer o Grand Slam da Austrália no último dia 25 em Melbourne, ela se superou.
“Agradeço a meu agente Max, que me tornou rica”, disse a esportista-ícone do país de regime comunista. Li acabara de embolsar US$ 2,3 milhões pela vitória. E o prêmio vai engordar o cofrinho de US$ 40 milhões que a terceira atleta mais bem paga do mundo vem alimentando com contratos desde 2010.
Agradeceu em seguida ao marido também tenista, que namora desde a adolescência. “Meu saco de pancada, meu faz-tudo. Muito obrigada. Você é um cara muito bacana. Teve muita sorte de me encontrar.”
Agradeceu por fim à legião de fãs, que a idolatram como Grande Irmã Na. Só no Weibo, o Twitter local, Li tem 21 milhões de seguidores. Três anos atrás, quando ela disputou a primeira conquista de Grand Slam, 116 milhões de compatriotas acompanharam o jogo pela televisão — audiência maior do que a do Super Bowl do ano passado.
Mais uma vez, a ausência de qualquer referência à pátria e ao sistema chinês de incentivo ao esporte foi gritante. Já em 2011, ao se tornar a primeira e até hoje única tenista da Ásia a vencer um torneio Grand Slam, Li fizera questão de não se declarar devedora da máquina estatal de produzir atletas.
Para o regime de Beijing o caso Li Na representa um teste delicado numa seara pouco testada da evolução política do país. Há vezes em que a mídia estatal aproveita as frequentes oscilações de desempenho da tenista na quadra para intensificar seus ataques contra o que chama de individualismo nocivo da atleta. Não tem dado certo.
Após o colapso da tenista no Aberto da França no ano passado, por exemplo, um repórter da agência Xinhua instou-a a explicar “aos fãs na pátria mãe” o motivo de resultado tão decepcionante. A resposta veio cortante: “Perdi uma partida, foi isso. Devo ficar de joelhos e me prostrar?”
Em 64 anos de autoridade comunista, a China jamais ouvira um atleta responder de forma tão insolente a um meio de comunicação oficial.
Desta vez, a Xinhua preferiu se fazer de surda e bateu tambor sozinha. Em editorial comemorativo à vitória da coqueluche nacional na Austrália a agência publicou um editorial intitulado “Por que Li teve êxito?”. A resposta: “O país cuidou de Li e a cultivou. O Estado é seu patrocinador.”
Na verdade, a interessante tenista de 31 anos é uma espécie de autoalforriada do sistema que vigora no país.
Fora empurrada a se especializar em badminton aos 5 anos de idade, para compensar a carreira de atleta do pai, abortada pela Revolução Cultural. Mas a precisão dos exames biométricos da escola de esportes local detectou a inadequação dos punhos e ombros da menina para o badminton. Ficou decidido que ela deveria se especializar em tênis, modalidade que poucos chineses praticavam ou sequer conheciam à época.
A partir daí sua rotina seguiu a engrenagem que há gerações testa, treina, forma e submete levas de jovens a duros limites físicos e mentais. Dia sim, outro também. Entra ano, sai ano. Li tinha 11 anos quando se rebelou pela primeira vez. Surtada de exaustão, recusara-se a prosseguir com um treino. Como castigo permaneceu de pé, imóvel, durante três dias de treinamento, ao cabo dos quais pediu desculpas. Só então foi autorizada a se mover.
Prevaleceu o talento. Após conquistar seu primeiro título nacional juvenil, Li passou dez meses imersa num centro de treinamento do Texas a convite da Nike. Ao voltar para casa, parecia destinada a ser a atleta-modelo da máquina chinesa de produzir campeões: aos 20 anos de idade, ela se tornara a nº 1 do país e seu nome já se aproximava da lista das 100 melhores tenistas do mundo.
Segundo um exaustivo perfil da tenista publicado no “New York Times”em agosto passado, foi então que Li Na simplesmente desapareceu.
“Sem avisar nenhum dos técnicos, Li escapuliu do centro de treinamento”, apurou o jornalista Brook Larmer. Para não levantar suspeitas, ela levou consigo apenas um pequeno nécessaire. E deixou na mesa do dormitório uma carta endereçada à diretoria anunciando sua aposentadoria precoce... Poucas horas depois, estava em Wuhan, sua cidade natal, com Jiang (o tenista Jiang Shan, seu namorado desde a adolescência e hoje marido, com quem era obrigada a se encontrar às escondidas). “Recomeçaram a vida como estudantes universitários.”
Um belo dia de 2006, passado mais de um ano desde a estrepitosa fuga, Li recebeu a visita-surpresa da nova responsável pelo programa nacional de tênis. Com a China mobilizada até o pescoço para brilhar nos Jogos Olímpicos de Beijing, a ex-tenista foi convidada a voltar com promessas de um futuro menos sufocante.
Li aceitou, só que o regime mudou menos do que o prometido.
Assim, logo que o país parou de festejar a supremacia de seu sistema esportivo (conquistou 51 medalhas de ouro em 2008 contra 36 dos Estados Unidos), Li Na anunciou que queria a alforria. Já conseguira chegar ao seleto grupo das 20 melhores tenistas do mundo e precisava de maior liberdade.
Para não perder a maior e mais celebrada atleta do país, o regime criou um programa biônico chamado danfei, ou “voo solo”, do qual já fazem parte também duas outras tenistas. Por esse sistema, Li treina como e com quem quer; faz a própria agenda de competições e repassa ao Estado apenas 15% do que ganha, em invés dos 65% que o regime garfa dos demais atletas. Tem por dever cumprir apenas um calendário básico de torneios nacionais e regionais.
Locomotiva de um esporte praticamente inexistente na China uma geração atrás, o fenômeno Li Na já tornou comercialmente viável a programação de oito torneios internacionais em 2014 só na cidade de Wuhan.
Contudo, como polo de um debate mais espinhoso sobre o papel da liberdade e do patriotismo no esporte, a tenista não quer abrir mão do que acredita ser sua maior conquista: “Só consigo representar a mim mesma.”
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