Jornalista Andrade Junior

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

'Mala suerte' -

JOÃO MELLÃO NETO

O Estado de S.Paulo -

A culpa, por aqui, é sempre dos outros. Desde que, na década de 1970, cursei a faculdade, tenho reparado que a nossa América Latina está permanentemente em crise - econômica, política e social. Gabriel García Márquez, em seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel de Literatura de 1982, afirmou ser este o continente da loucura. Listou o escritor um imenso rol de governantes com traços esquizoides e maníaco-depressivos. Alguns deles falavam com as paredes, outros reclamavam por estarem tão longe de Deus e tão próximos dos Estados Unidos. Fatalismos à parte, o problema parece ser justamente o contrário.

De um lado, acreditamo-nos extremamente íntimos do nosso Deus católico - do qual sempre aguardamos o socorro da Divina Providência; e, de outro, teimamos raivosamente em nos manter distantes dos Estados Unidos. Razões não faltam. O Deus deles é protestante (valha-nos, Senhor! Não mostra piedade pelos pequenos e costuma ajudar mais a quem se ajuda do que a quem reza por ajuda).

Mas deixando Deus de lado, o fato é que o Deus protestante é duro, inflexível e não tem o perdão entre suas práticas habituais. Entende-se, por lá, nos Estados Unidos, que cada um possui o livre-arbítrio e que este deve ser usado com a melhor prática possível. Não, não há salvação possível. Cada um já nasce com o seu destino marcado e não há nada que se possa fazer para mudá-lo.

Não é por acaso que as hecatombes por estas plagas encontram terreno propício para vicejarem. Reza o ditado que, por aqui, as tempestades acontecem sempre antes das enchentes. E por lá elas também são seguidas por tremendas inundações. Aí é um salve-se quem puder!

Da mesma forma, tampouco é fortuito o fato de que a inflação, por aqui, encontre terreno fértil para vicejar. Como nos tangos argentinos, em que o cantante enche a mulher de pancada e depois a amaldiçoa porque ela o deixou na sarjeta, os nossos governantes são especialistas em arruinar a economia e, posteriormente, encontrar um culpado pelas desgraças resultantes. O economista Jeffrey Sachs enumera casos exemplares: Juan Domingo Perón, Salvador Allende, Alan García e José Sarney. Mas a lista, na verdade, ascende às dezenas.

Os métodos para chegar ao poder, no entanto, são poucos: ou se dá um golpe para "salvar a nação" ou se tenta o caminho das urnas. No primeiro caso, basta criar um plano de governo minimamente convincente, cabalar uma dúzia de generais e, em seguida, derrubar as portas do palácio do governo. As dificuldades começam aí. Para manter o poder se requer uma estratégia mais sutil: o candidato a ditador vai aos pobres, pede-lhes votos e promete defendê-los contra a sanha dos ricos. A seguir, dirige-se aos ricos com a promessa de protegê-los contra a voracidade sem fim dos pobres.

Armados de razoável eloquência, não é difícil para eles convencerem ambos os lados de sua sinceridade, criando nos dois grupos a expectativa de que, uma vez empossados, viveremos todos um novo advento de Deus na Terra. Porém há um problema: os cofres públicos não são imensos como o coração de Deus. Assim sendo, como é que o Tesouro Nacional pode financiar, simultaneamente, o "lucro sem risco" pleiteado por alguns e a riqueza sem trabalho "almejada por muitos"?

Parte-se, então, para o "desenvolvimentismo", curiosa teoria segundo a qual a economia é absolutamente elástica, espichável como uma goma de mascar, para aquilo que a gente gostaria que fosse realizado. Aos "empresários" são concedidos subsídios, isenções fiscais e reservas de mercado. Já para os trabalhadores se criam programas assistencialistas, leis paternalistas e regalias as mais diversificadas.

E quem paga a conta? Ora, o próprio erário.

Como se prevê que tudo isso levará ao desenvolvimento acelerado, é previsível, por consequência, que a economia crescerá em índices acentuados, o que permitirá ao governo arrecadar mais impostos e, com eles, pagar tudo o que sacou antecipadamente. Trata-se, na verdade, de um volumoso cheque emitido contra o futuro.

Os latinos são sempre otimistas porque partem da premissa de que Deus é um cidadão local e não lhes faltará no momento apropriado. O futuro, como ninguém o conhece, cada um o idealiza como bem quiser: os preços do petróleo haverão de cair, os gringos terminarão por perdoar as nossas dívidas, o déficit fiscal acabará por ser corrigido - e tudo, no final, dará certo.

O problema é que esse cheque não tem fundos. Se o bom uísque, como diz um antigo comercial, você só conhece no dia seguinte, o mau uísque, então, nem se fala. A balança comercial implode, o déficit público estoura e os quatro cavaleiros do Apocalipse - quais sejam, a peste, a fome, a guerra e a morte - voltarão. Que ninguém se iluda: de tantos em tantos anos o frenesi recomeça e eles vão se apresentar novamente, um após o outro, num ritmo irresistível, para cobrar dos homens o que lhes é devido.

Igualmente de tanto em tanto tempo, eles voltarão com promessas renovadas e fórmulas muito mais sofisticadas, com uma dosagem mais bem balanceada, para conseguirem convencer novamente os homens. E garantirão o sucesso da poção por pura credulidade dos fregueses. Afinal, é melhor crer do que descrer, acreditar em alguma coisa do que não crer em mais nada.

Assim, quem sabe, Deus se arrepende de sua inflexibilidade, torna-se mais misericordioso e nos concede mais um milagre. Eu prometo que será um só. O resto a gente conversa depois...

Esta é a triste sina dos latino-americanos: acreditamos demais em Deus, a ponto de Ele se ver forçado a, de quando em quando, nos dar uma rasteira de advertência. Como é da sabedoria árabe, confie em Alá, mas não se esqueça de amarrar o seu cavalo.

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