Por Carlos I.S. Azambuja
A complacência de hoje é paga com as angústias de amanhã.E se ela persiste, com o sangue de depois de amanhã” (Suzanne Labin, livro “Em Cima da Hora”)
O período de violência armada, nos anos 60 e 70, foi um tempo em que, em todo o mundo, se propalava que o capitalismo estava com os dias contados. Um tempo em que as revoluções de esquerda eram consideradas iminentes, segundo aquela modelada pelos guerrilheiros cubanos que instalaram em Cuba uma república democrática popular (ou seja, um governo do povo popular, pleonasmo que se prolonga até hoje!) e procuravam estender esse pleonasmo a todo o continente; ou ainda, segundo aquela copiada do livrinho vermelho de Mao-Tsetung, de guerra popular prolongada. Um tempo de mudanças e contestações, em que as teses filosóficas de Herbert Marcuse propalavam que era “proibido proibir”. Um tempo, enfim, em que um punhado de jovens militares e civis, sem dinheiro, sem doutrina e sem equipamentos, mas com disposição e vontade, – no início por conta própria, é verdade -, decidiram combater e, ao final, erradicaram o terrorismo, os seqüestros de diplomatas e de aviões e as guerrilhas urbana e rural.
A doutrina, o dinheiro, a organização e os equipamentos viriam depois. No início foram substituídos pela imaginação, pelo desprendimento e pelo forte sentimento de que era imperativo defender a sociedade. Os procedimentos iam sendo inventados na medida das necessidades, face à rapidez com que os acontecimentos se sucediam.
Somente a partir de meados de 1970, com a constituição dos Destacamentos de Operações e Informações, subordinados aos Centros de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI), passou-se a atuar ordenadamente. Então, Marighela não mais existia, embora tivesse deixado atrás de si um legado que, traduzido em vários idiomas, ainda iria causar uma montanha de mortos: o Minimanual do Guerrilheiro Urbano.
Tudo isso aconteceu não sem a perda de vidas, não sem sangue, suor e lágrimas e não sem que reputações fossem manchadas, carreiras abreviadas, promoções postergadas, injustiças e erros fossem cometidos.
Foi um tempo duro, diferente e difícil. Um tempo, no entanto, do qual aqueles que o viveram e participaram devem se orgulhar. Um tempo que, esperamos, jamais voltará.
Passados 40 anos, alguns persistem em manter na ordem do dia uma discussão acadêmica, sobre a qual muitas pessoas não têm clareza: o de quem deu o primeiro tiro; quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha; se o terrorismo ou a chamada repressão, com uma parte da mídia, alguns políticos, escritores e cientistas sociais advogando que a insana violência armada desencadeada pela esquerda radicalizada foi fundamentalmente uma reação à Revolução de Março de 1964, segundo uns, ou ao Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, segundo outros.
A verdade é que o projeto de violência armada desencadeada pelo Partido Comunista do Brasil nas selvas do Araguaia, por exemplo, foi anterior à própria Revolução de 1964, e os projetos, nesse mesmo sentido, das demais Organizações constituídas pelos dissidentes do Partido Comunista Brasileiro, foram uma espécie de justificativa encontrada pelos militantes que abandonaram esse partido, por serem contrários à sua opção pelo chamado caminho pacífico da revolução. Condenando o caminho pacífico, a alternativa era desencadear a revolução.
Desde o início dos anos 60 a esquerda radicalizada alimentava o ovo da serpente, estimulada pelo exemplo da revolução cubana. Isso sem falar nas propostas de revolução armada que vinham de muito antes, na melhor tradição bolchevique, de assalto ao Palácio de Inverno, como o levante comunista de novembro de 1935.
O certo é que no período de agosto de 1961 – quando o presidente Jânio Quadros renunciou – a 31 de março de 1964, foi colocada em xeque, no Brasil, a chamada ordem constitucional burguesa, segundo o jargão das esquerdas.
No governo de João Goulart, que sucedeu o de Jânio Quadros, já existiam organizações e grupos voltados para aquilo que, sutilmente, era denominado de “formas de luta mais avançadas”:
•- as Ligas Camponesas de Francisco Julião – mais tarde, em 21 de abril de 1962, efemeramente transformadas no Movimento Revolucionário Tiradentes -, são o exemplo mais nítido. Já em 1961, tão logo Julião regressou de uma viagem a Cuba, diversos militantes das Ligas foram mandados àquele país para receber treinamento militar. Ainda mais remotamente, recorde-se que, em 1957, quando na condição de deputado federal realizou uma viagem à União Soviética, Julião solicitou a autoridades do PC Soviético o fornecimento de armas para equipar as Ligas e fazer a revolução no Brasil (1);
•- A Organização Revolucionária Marxista Política Operária (ORM-POLOP), que ficou conhecida como POLOP, constituída em fevereiro de 1961, agrupou elementos de várias tendências alternativas ao PCB, e se destacou pelo intenso trabalho de doutrinação e formação de quadros, bem como pela propaganda das idéias socialistas, tendo como referência os escritos de Rosa de Luxemburgo, Trotsky e Bukharin. Em maio de 1964, decorridos apenas dois meses da Revolução de Março, adiantou-se aos acontecimentos de viriam marcar a dinâmica das esquerdas por quase uma década, tornando público um documento que definia a guerrilha como o caminho a seguir, e em torno desse documento tentou cooptar e organizar os sargentos e marinheiros expulsos das Forças Armadas em 1964;
•- o Partido Comunista do Brasil, constituído em 1962 a partir de uma cisão no PCB, ainda no governo Jango, em fins de março de 1964, enviou um grupo de militantes à China, a fim de receber treinamento na Academia Militar de Pequim para, no regresso, a partir de 1966, instalar no Araguaia o embrião da guerra popular prolongada (2), teoria imaginada por Mao-Tsetung.
•- a Ação Popular (AP), constituída em 1962 com raízes no cristianismo, particularmente na Juventude Universitária Católica (JUC) que exercia domínio indiscutível sobre a União Nacional de Estudantes. Desde sua formação, passou pela influência da Revolução Cubana, adesão ao marxismo-leninismo em 1968 e integração da maioria ao PC do B em 1973. Logo após a Revolução, mandou também um grupo de militantes receber treinamento político-ideológico em Pequim. Esse grupo, “regressou ao Brasil transfigurado e logo depois transformaria a AP numa organização marxista-leninista-maoísta”, conforme o depoimento de Herbert José de Souza, o “Betinho”, então coordenador nacional da AP (3);
•- o Partido Operário Revolucionário Trotskista-Posadista, com efetivos reduzidos e nenhuma inserção social, constituído em 1952, pelo argentino conhecido pelo codinome de “Juan Posadas”, bem como diversos outros grupos trotskistas, embora seja verdade que nenhum deles jamais optou pela forma de violência armada;
•- os famosos “Grupos dos Onze”, uma inspiração de Leonel Brizola, então deputado federal, constituídos em 1963.
O projeto de violência armada foi, assim, bem anterior a 1964. Isso é reconhecido por aquela esquerda onde há um mínimo de vida inteligente:
“(…) Assim, antes da radicalização da ditadura, em 1968, e antes mesmo de sua própria instauração, em 1964, estava no ar um projeto revolucionário ofensivo. Os dissidentes se estilhaçariam em torno de encaminhamentos concretos (…). Aprisionados por seus mitos, que não autorizavam recuos, insensíveis aos humores e pendores de um povo que autoritariamente julgavam representar, empolgados por um apocalipse que não existia senão em suas mentes, julgavam-se numa revolução que não vinha, que, afinal, não veio, e que não viria mesmo” (4)
Nesse contexto, com dissidências em vários Estados, foi rápida a conversão das bases radicalizadas do PCB à tática da violência armada.O PC Soviético, na segunda metade da década de 60, também treinou um grupo de militantes do PCB em táticas voltadas para a violência armada, denominadas pelo partido, na codificada linguagem partidária da época, de “Trabalho Especial”.
Entretanto, com exceção da “experiência” do Araguaia, através da qual o Partido Comunista do Brasil buscou a implantação do embrião da “Guerra Popular Prolongada”, com know-how importado da China, nenhum grupo de esquerda chegou a reunir, jamais, as condições mínimas de infra-estrutura para a instalação daquilo que o cientista social francês Regis Debray, companheiro de Che nas selvas da Bolívia, definiu como “Foco Guerrilheiro”, em seu livro “Revolução na Revolução”.
Os seqüestros de diplomatas estrangeiros e de aviões comerciais, os assassinatos – inclusive de companheiros – a título de “justiçamentos”, a avidez com que eram praticados os roubos de armas, de agências bancárias e até mesmo de residências, para financiar a instalação do “Foco” e como propaganda armada para “estimular as massas”, pouco a pouco foram transformados em tática militar e iriam consumir os principais quadros dessas organizações, levando ao seu total desmantelamento durante o ano de 1974.
O Ato Institucional nº 5 assinado pelo presidente Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968, nada mais foi, portanto, que uma resposta. Antes disso, já existiam vítimas da esquerda radicalizada, como o soldado Mario Kozel Filho, morto em 26 de junho de 1968 quando da explosão de um carro-bomba atirado contra o portão do II Exército, em São Paulo e o “justiçamento”, em 12 de outubro de 1968, de Charles Rodney Chandler, capitão do Exército dos EUA, em São Paulo, na frente de seus filhos.
O AI-5 foi, portanto, um ato de legítima defesa do Estado.
Em todo esse contexto, a discussão acadêmica para descobrir, hoje, quase 40 anos depois, quem deu o primeiro tiro, não passa, portanto, de uma “masturbação sociológica”.(5).
As guerrilhas urbana e rural ceifaram vidas preciosas de jovens idealistas, a grande maioria composta de universitários e até secundaristas, impregnados da ideologia que, então, lhes era incutida nos colégios, escolas e universidades pelos homens de palavra, que nunca colocaram em risco suas vidas.
Quando a violência armada nas cidades realmente eclodiu, no ano de 1968, as Forças Armadas, tradicionalmente, em todo o mundo, preparadas e condicionadas para travar guerras convencionais, chamadas para dar combate a essa guerra suja, viram-se frente a inúmeras dificuldades. Em razão disso, foi necessário, em um curto prazo, que se adaptassem, aprendendo coisas que não lhes haviam sido ensinadas nas Escolas Militares.
Para isso contou com a participação efetiva de um grupo de jovens oficiais e praças, e alguns civis, prontos a servir à Pátria. Foram muitas, portanto, as improvisações. Os métodos de trabalho iam sendo aprendidos na prática, na medida em que os acontecimentos ocorriam, num ritmo cada vez mais alucinante. Tenho orgulho de ter participado desse grupo.
Registre-se que o principal fator de fraqueza, que tornou vulnerável a esquerda armada, foi a extrema divergência entre suas concepções táticas, bem como a ânsia de mando, responsável por inúmeras e permanentes cisões, com a constituição de um sem número de Organizações, grupos e grupelhos desprovidos de um mínimo de coesão e infra-estrutura, perdendo em capacidade de luta e tornando-se permeáveis à infiltração pelos Órgãos de Inteligência.
Hoje, os perdedores de ontem e seus epígonos, muitos com cargos no governo, mesmo após o desmantelamento da “doutrina científica”, com ares de reformistas, não cessam de explorar os mortos, de distorcer os fatos, de exaltar os covardes, fazendo acusações infundadas, promovendo falsos testemunhos e acusando com a ausência do contraditório. Esquecem os assassinatos, a título de “justiçamentos”, de civis não-combatentes, de alguns de seus próprios companheiros que ousaram expor suas dúvidas e pensar com suas próprias cabeças; esquecem o abandono de companheiros nas selvas do Araguaia; e esquecem a eliminação traiçoeira de amigos e inimigos, “justiçados” após simulacros de “julgamentos”.
(1) Declaração de Oleg Ignatiev, ex-Secretário da embaixada da URSS em Buenos Aires; O Globo, 12 de julho de 1999, no obituário de Francisco Julião
(2) Livro “Combate nas Trevas”, do escritor marxista Jacob Gorender
(3) Livro “No Fio da Navalha”, de Herbert José de Souza, o “Betinho”
(4) Daniel Aarão Reis Filho – foi dirigente do MR8; banido do país em troca da liberdade do embaixador Von Holleben, da então Alemanha Ocidental; hoje, é professor de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense -; artigo “Este Imprevisível Passado”, na revista “Teoria e Debate” de julho/agosto/setembro de 1996, editada pelo PT
(5) Royalties para o falecido ministro Sérgio Motta, autor da frase.
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