Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 17 de abril de 2020

MOÇA MORDE CACHORRO NO BOEING .

por Fernando Fabbrini

Era só uma dica em forma de piada. No entanto, a recomendação dos jornalistas experientes aos repórteres calouros fez história: “cachorro morder a moça não é notícia. Mas, se a moça morder o cachorro, vira manchete”.
Me lembro dessa frase cada vez que leio matérias sobre a Covid-19 nos jornais e sites – coisa que faço cada vez menos. E me pergunto: até que ponto o exagero e o sensacionalismo ainda servem ao jornalismo de hoje? É uma questão delicada, sobretudo nesses tempos de fake news e sobrecarga de informações.
Sobre o assunto, venho trocando ideias com editores e repórteres de meu círculo de amizades. Como não sou jornalista - apenas um cidadão que gosta de escrever -, ouço deles análises mais precisas e confiáveis. Unânimes, afirmam que a notícia boa, a trivial, não chama atenção. O bicho homem definitivamente não valoriza o cotidiano banal, sem sobressaltos. Por outro lado, a versão alarmista arrepia a pele do leitor e gera uma pandemia de comentários.
No passado, o jornal “Notícias Populares” mantinha-se fiel à linha editorial assustadora e debochada, publicando manchetes que entraram para o anedotário. “Aluno é expulso por causa do chulé”; “Kombi era motel na escolinha do sexo”; “Mulher dá à luz a tartaruga”; “Exorcista tira cobra da barriga da velha"” são algumas do jornal do qual se dizia pingar sangue, se torcido. A notícia em si era vaga e o texto da matéria sempre amenizava o fato. Mas, missão cumprida: outro exemplar já fora vendido ao curioso transeunte.
Dias atrás um jornal publicou reportagem com uma intensivista do Hospital João XXIII, instituição de Belo Horizonte com louváveis serviços à comunidade. O repórter pinçou uma frase dita pela moça na entrevista: “mal consigo beber água”, referindo-se à rotina exaustiva no atendimento às vítimas da Covid-19. E usou-a no título.
Horas depois, a Fundação Hospitalar de Minas Gerais divulgou nota. Entre outras informações, ficamos sabendo que não havia, até aquele momento, nenhum paciente internado no João XXIII com suspeita de Covid-19. O acolhimento dos casos suspeitos, como de praxe, estava sendo feito em outra unidade da capital, preparada especialmente. A nota informava ainda sobre o número de leitos disponíveis e dados – estes sim - de interesse geral, além de esclarecer que “profissionais da rede que trabalham na linha de frente (...) são constantemente treinados, inclusive na paramentação e desparamentação. E mais: “os equipamentos da profissional que aparecem na foto da matéria não condizem com a orientação do Hospital (...) estabelecida pelo Ministério da Saúde”.
A notícia foi retirada do portal. Com certeza, reconheceram a lambança do repórter ao direcionar a reportagem - sabe-se lá com qual intenção. Faltou um pedido de desculpas aos leitores.
A internet e as redes mudaram tudo no acesso à informação. A ansiedade dos repórteres pelo “furo” pode ocultar a busca de visibilidade nesse novo cenário concorridíssimo ou a necessidade de aplausos da respectiva claque ideológica. Incapazes de se aterem ao fato principal, alguns afogam-se no redemoinho do supérfluo. Outro dia li num dos maiores sites de notícias do país: “Mortos nos EUA em 24h equivalem às vítimas de quedas de 10 Boeings”. Uau! Que criatividade! Imaginei o cara, afoito, pesquisando no Wikipedia sobre quantos passageiros cabem num Boeing, fazendo contas até chegar ao número comparativo.
Ah, é assim? Então, ficou incompleta a notícia. Faltou dizer, por exemplo, qual o modelo de Boeing: o novo 777? O tradicional 737? O antigo Jumbo? E também explicar qual fenômeno meteorológico devastador ou falhas mecânicas causariam os desastres simultâneos – no caso, informações jornalísticas imprescindíveis para esclarecimento do leitor e enriquecimento de sua cultura aeronáutica.
* Enviado pelo autor. Publicado originalmente em O Tempo de Belo Horizonte.
 
















extraídadepuggina.org

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