Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 24 de abril de 2020

"O perigo mora numa praça em Brasília",

 por Augusto Nunes

O presidente da República é um milico de carteirinha, tem como vice um general e governa em sintonia com oficiais instalados em cargos estratégicos. Por que tantos militantes que votaram em Jair Bolsonaro seguem empunhando a bandeira da “intervenção militar”? Estariam insatisfeitos com o desempenho do chefe de governo e seus ministros fardados? Nada disso, informam os comandantes da tropa de soldados à paisana. Todos querem que Bolsonaro e o grupo que trocou a farda verde-oliva pelo terno cinza-planalto permaneçam onde estão. Mas exigem que o Congresso e o Superior Tribunal Federal sejam varridos da Praça dos Três Poderes. Removidas as pedras do caminho, e com o apoio explícito e incondicional do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e do Povo, Bolsonaro enfim daria um jeito no Brasil.
“Um dos nossos grandes erros foi não ter promovido militares simpatizantes do PT”, confessou José Dirceu entre uma temporada na cadeia e uma sequência de bandalheiras gerenciadas pelo guerrilheiro de festim que virou facilitador de negociatas. Nas fantasias do capitão do time de Lula, expulso de campo por jogadas criminosas, a existência de coronéis e generais petistas poderia ter transformado Lula num Hugo Chávez dispensado de estudar em colégios militares. Ou, por que não?, num Fidel Castro poupado de tiroteios e do desconforto da vida na mata. (Dirceu sempre chorou nos reencontros com Fidel Castro. Mas o choro ficava mais sentido quando Fidel aparecia com o uniforme de comandante.)
Em 2005, no discurso em que formalizou a entrega da Casa Civil a Dilma Rousseff, Dirceu evocou os tempos em que declararam guerra ao governo militar. “Minha companheira de armas”, fantasiou na saudação à sucessora. Nenhum dos dois jamais disparou uma bala de verdade — ela porque nunca foi além do apoio logístico aos grupos de ação, ele por ter optado pela rendição preventiva. Mas ambos capricham na pose de guerreiro várias vezes condecorado por demonstrações de bravura em combate, e fazem de conta que serão os primeiros a liderar batalhões imaginários. O “exército do Stédile”, por exemplo. Ou o “exército da CUT”, há muito tempo entrincheirado em algum grotão do Brasil. É natural que sonhem com a adesão de tropas de verdade. E teimem em enxergar nos chefes militares de 2020 os generais de 1964.
Nada a ver, confirma a reação dos oficiais graduados à manifestação ocorrida neste 19 de abril nas imediações do Quartel-General do Exército, em Brasília, com a participação do presidente da República. Bolsonaro não incluiu em seu discurso nenhuma das palavras de ordem, berradas pela minoria dos participantes, que exigiam o fechamento do Congresso e do Supremo. Mas só as renegou no dia seguinte. Generais da reserva mal camuflaram o desconforto causado pela escolha do local do ato político. Militares da ativa não viram nada de mais — nem no cenário da manifestação nem nas bandeiras desfraldadas por correntes radicais. Se o evento aconteceu ali, deduziram oficiais graduados, certamente fora autorizado pelo comandante do Exército. Todos reiteraram o mantra: o Exército se limita às atribuições estabelecidas pela Constituição. Tradução:
Não foi assim enquanto existiu o Partido Verde-Oliva, surgido na década de 1920 na esteira das ações políticas da mais impetuosa e politizada geração de tenentes. Divididos em alianças cuja composição obedecia às circunstâncias e conveniências, os líderes do movimento tenentista desempenharam papéis relevantes na Coluna Prestes, na Revolução de 1930, no parto e na agonia do Estado Novo, nas eleições presidenciais que se seguiram ao fim da ditadura, na crise que levaria Getúlio Vargas ao suicídio, nos barulhos que marcaram a eleição e a posse de Juscelino Kubitschek, na renúncia de Jânio Quadros, na deposição de João Goulart e na instauração do regime militar de 1964. Ao longo desse período, os antigos tenentes criaram a figura do militar anfíbio, que podia usar alternadamente o terno de governante civil e a farda de comandante de tropas.
Até sair de cena como marechal, o tenente Oswaldo Cordeiro de Farias foi interventor do Rio Grande do Sul de 1938 a 1943, um dos comandantes da FEB na Segunda Guerra Mundial em 1944, comandante do III Exército em 1949 e governador eleito de Pernambuco entre janeiro de 1955 e novembro de 1958. Novamente nomeado para o comando do Exército durante o governo Jango, nem chegou a assumir o posto. Engajado na conspiração que seria vitoriosa em 1964, foi incorporado ao alto escalão do presidente Castello Branco como ministro do Interior. A primeira reunião do ministério juntou Cordeiro de Farias aos velhos companheiros Eduardo Gomes (candidato à Presidência em 1945 e em 1950), Juarez Távora (candidato à Presidência da República em 1955) e Juracy Magalhães (que chegou como interventor ao governo da Bahia e voltou duas vezes ao cargo pelo voto popular).
Mas os remanescentes do tenentismo continuaram em ação. E coube a um deles, Ernesto Geisel, planejar e conduzir a “abertura lenta, gradual e segura” que, ao fim do mandato de João Figueiredo, encerrou o ciclo dos generais-presidentes, ressuscitou o regime democrático e afastou as Forças Armadas do desgastante monopólio do poder. Nos anos seguintes, generais que eram adolescentes ou nem haviam nascido em 1964 ensinaram a sucessivas gerações de cadetes que política não rima com quartel. Hoje, o típico militar brasileiro se concentra na missão de preservar a integridade do território nacional e garantir a lei e a ordem constitucional. Quem gosta do tiroteio eleitoral abandona a caserna a vai à luta.
Só não sabe disso (ou finge não saber, o que dá na mesma) gente que vê o começo da reprise de 1964 quando ouve o toque de clarim que abre uma parada militar. Para esses, o passado não passa. A essa tribo pertencem jornalistas que consumiram parte da vida consultando, coração em descompasso, a dança das estrelas no Almanaque do Exército. Eles recitavam os nomes dos generais de exército — possíveis presidentes da República, portanto — com mais segurança que a demonstrada quando instados a escalar o ataque do Santos de Pelé. Hoje, não chegam a cem os inscritos no Enem que sabem quem é o comandante da Aeronáutica. Mas até cretinos fundamentais conhecem os presidentes da Câmara e do Senado, e soletram nome e sobrenome dos onze ministros do Supremo que atuam no time da toga. Olho neles. Qualquer movimentação de tropas é menos assustadora que uma conversa em voz baixa entre Gilmar Mendes e Rodrigo Maia.

Revista Oeste














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