Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 24 de abril de 2020

"Deserto legal, violência e ‘Covidão’",

 por J.R. Guzzo

Brasil do coronavírus está vivendo hoje num estado de quase desordem legalizada. O Supremo Tribunal Federal, por conta da epidemia, colocou os próprios deveres em quarentena, escondeu-se debaixo da cama e decidiu abandonar oficialmente o Brasil, para todos os efeitos práticos, às “autoridades locais” — os governadores e prefeitos, sem deixar bem claro se os primeiros estão acima dos segundos ou se as assembleias legislativas e câmaras de vereadores têm alguma coisa a declarar (elas acham que têm, claro) a respeito do que resolvem os Executivos estaduais e municipais. A decisão de que Estados e prefeituras mandam em tudo significa que estamos, em aspectos essenciais da vida cotidiana, numa terra sem lei.
Onde cada um tem a sua lei, não há lei nenhuma.
Há, na vida real de hoje no Brasil, 27 países independentes, cada um com seu presidente da República — no caso, o governador do Estado — e cada um decidindo o que bem lhe dá na telha, em benefício de seus interesses e sem o controle de ninguém. Como se trata de serviço malfeito, acabaram sendo criadas cerca de 5.500 regiões autônomas, ou mais ou menos isso, que são os municípios, onde não se sabe se, quando, onde e em que, exatamente, a autoridade é do governo estadual ou da prefeitura. 
Em São Paulo, por exemplo, o prefeito de um município do litoral decretou que só podem entrar em sua cidade cidadãos que tiverem título de eleitor local; ou mostra o título para o guarda, ou não entra. E como fica a coisa com o governador João Doria, então? Seu título de eleitor é de São Paulo, capital; pode ou não pode entrar numa cidade de seu próprio Estado? Desordem, somada à cretinice, dá nisso.
 A Assembleia Legislativa virou o Senado e a Câmara de Deputados do Piauí — e por aí vamos. Isso não é “descentralização”, ou distribuição de responsabilidades, ou reforço das autoridades locais em questões que, segundo a alta filosofia dos ministros do Supremo, “exigem soluções locais”: é anarquia. É a vitória da brutalidade, do guarda da esquina e das ordens ilegais. 
O STF, é claro, não autorizou nenhuma autoridade, expressamente, a espancar cidadãos, algemar mulheres e prender crianças. Não deu permissão para violar a Constituição e o restante das leis brasileiras. Não disse que é proibido cair no mar, nem que depois não se possa atravessar a praia para voltar para casa. Mas é isso que está acontecendo todos os dias, porque quem manda é quem tem farda e crachá de autoridade.
Quem deveria deter esses crimes — pois abuso da autoridade é crime — é a Justiça. Mas a única ação que se pode observar por parte do Judiciário até agora, no Brasil da epidemia, é soltar criminosos. Segundo a orientação do Conselho Nacional de Justiça, os juízes estão autorizados a ordenar a libertação de qualquer bandido, mesmo se estiver condenado a mais de 70 anos de prisão (como aconteceu outro dia no Paraná), para evitar que pegue a covid-19 na penitenciária. 
Dizem que é “prisão domiciliar”. É uma piada. Está na cara que o criminoso foge assim que põe o pé para fora do xadrez; não vai esperar em casa, direitinho, que a epidemia passe e aí voltar para a cadeia, como o Meritíssimo disse para fazer. Os criminosos não são tão idiotas quanto os juízes que mandam soltá-los. Resultado: o país vê um cidadão inocente ser preso por estar sentado num banco de praça pública e o bandido ser solto.
 Qual o respeito pela Justiça e pela autoridade pública se pode exigir das pessoas quando aberrações como essas passam a fazer parte da paisagem diária do Brasil? Os tribunais superiores sumiram. O Ministério Público, que neste preciso momento exige “apurações rigorosas” para descobrir quem está agindo “contra a democracia”, não dá um pio diante das arbitrariedades, da violência física e da violação da lei praticadas por autoridades. Não objeta à libertação de criminosos condenados. Também se ouve um imenso silêncio, de sua parte, diante da corrupção agressiva que foi criada junto com a baderna no combate à covid-19.
Sim, é isso mesmo — roubalheira. Já temos aí, com menos de dois meses de epidemia, o “Covidão”. É claro que temos. Queriam o quê? Para ficar num aspecto só, e não alongar a conversa, foi autorizado que as “autoridades locais” façam compras, assinem contratos e gastem com obras sem necessidade de concorrência pública. Se já era um perigo com concorrência, edital e tudo o mais, imaginem sem. Já está rolando ladroagem grossa nesse novo mercado que acaba de ser aberto com o vírus — respiradores, testes de contágio, construção de “hospitais de campanha”, propaganda do tipo “fique em casa”, e por aí afora. 

Enquanto durar a epidemia, e a desordem legal que a Justiça permitiu que fosse criada em consequência dela, os governadores e prefeitos vão continuar mandando, como jamais mandaram. Mais: ganharam uma espécie de alvará de grande arte da mídia para meter a mão no Erário, pois noticiar esse tipo de coisa é visto em muitas redações como “colaborar com o fim do confinamento” etc. etc. É claro que farão tudo o que puderem para prolongar pelo maior tempo possível essa situação. Não querem largar o osso. Ou você acredita que eles estejam realmente interessados em seu bem-estar?


Revista Oeste















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