por José Rogério Cruz e Tucci
No exercício da profissão de advogado, em quatro décadas, poderia dizer “que já vi de tudo”! Hoje em dia, contudo, tem chamado a atenção de todos – versados ou não em direito -, um fenômeno que impropriamente vem sendo chamado de “ativismo judicial”, mas, que, na verdade, mais se ajusta à figura do “juiz ideológico”, que tanta perplexidade causou, em particular, à época do auge do fascismo na Itália. A quebra da ordem imposta pela Constituição de Weimar foi também apanágio da ditadura judicial durante o nazismo. Esse modelo de magistrado destemido deixava de aplicar a lei, deixava de interpretar a lei, desprezava os autos do processo, para julgar de acordo com os seus anseios e expectativas pessoais, substituindo o próprio legislador. Não é preciso frisar que o pronunciamento judicial assim engendrado, a um só tempo, conspira contra os textos legais e subestima a inteligência de quem o examina!
Pois bem, encerrada a participação da seleção canarinho na Copa do Mundo, o domingo parecia bem tranquilo e menos emocionante aos brasileiros dos quatro cantos do nosso país.
No entanto, logo no início da tarde, fomos todos surpreendidos com o teor de uma decisão monocrática, que determinou a expedição de alvará de soltura do ex-presidente Lula, no bojo de um habeas corpus (HC 5025614-40.2018.4.04.0000), impetrado no Plantão Judiciário de 2.º grau, do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região.
A notícia ganhou, em poucos minutos, enorme proporção, por duas relevantes razões: de um lado, porque todos se lembram do retumbante julgamento, pela 8.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, da apelação criminal interposta pelo ex-presidente Lula, que culminou determinando o seu encarceramento, antes mesmo do trânsito em julgado do respectivo acórdão; e, de outro, a revelação contundente de que o desembargador de plantão, Rogério Favreto, que concedeu liminarmente a ordem de soltura, além de ter sido filiado ao Partido dos Trabalhadores entre 1991 e 2010, trabalhou efetivamente em órgãos de cúpula – esteve em quatro ministérios diferentes -, durante vários anos dos governos Lula e Dilma!
Ora, em primeiro lugar, qualquer estudante de direito detém suficiente conhecimento para saber que a Constituição Federal contempla, nos incisos XXXVII e LIII do artigo 5º, a garantia do “juiz natural”, ou seja, quando a competência se firma perante uma determinada autoridade judicial, apenas esta ou o seu superior hierárquico é que tem atribuição para examinar qualquer pedido formulado pelas partes interessadas.
No caso da ordem de prisão do ex-presidente Lula, o Brasil inteiro sabe que a 8.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, integrada pelo desembargador relator da indigitada apelação João Pedro Gebran Neto, constitui o “órgão natural” do processo no qual foi ordenada a prisão do ex-presidente Lula. Assim, apenas o referido relator e tão somente ele é a autoridade credenciada, pela Constituição Federal, a decidir acerca de quaisquer questões relacionadas àquele processo.
Ademais, segundo amplamente noticiado pela imprensa, a ordem de habeas corpus foi examinada em 32 minutos após a sua respectiva impetração, por um magistrado que “por coincidência, mera coincidência”, estava previamente escalado para atuar no Plantão Judiciário, no domingo, dia 8 de julho.
Ocorre que, na sequência dos acontecimentos, o Brasil assistiu de forma lamentável a um verdadeiro conflito positivo de competência, o que significa que tanto o desembargador plantonista Rogério Favreto, quanto o desembargador relator, afirmaram ser competente para decidir a questão, gerando incontornável crise institucional. O desembargador João Pedro Gebran Neto, no meio da tarde de domingo, em extensa e fundamentada decisão, “cassou” a eficácia do ato decisório que determinou a revogação da prisão do ex-presidente Lula, e, ainda, asseverou que: “para evitar maior tumulto para a tramitação deste habeas corpus, até porque a decisão proferida em caráter de plantão poderia ser revista por mim, juiz natural para este processo, em qualquer momento, DETERMINO que a autoridade coatora e a Polícia Federal do Paraná se abstenham de praticar qualquer ato que modifique a decisão colegiada da 8.ª Turma”.
Dois outros aspectos chamam atenção: o fato de que foi apontada, como autoridade coatora, o juiz de direito de 1.º grau, responsável pela execução da pena, o que se apresenta como inominado equívoco, visto que a ordem de prisão adveio da apontada 8.ª Turma. Não obstante, com esse expediente matreiro, o habeas corpus foi impetrado ao desembargador de plantão; e, ainda, o fundamento para o desembargador Rogério Favreto deferir o pedido liminar para suspender a execução provisória da pena, consistente “num fato novo”, qual seja, a condição de pré-candidato de Lula.
Não satisfeito com o dilema, sobreveio nova determinação – inclusive, segundo informação da imprensa, acompanhada de ameaça verbal – do desembargador Rogério Favreto, para que fosse imediatamente cumprida a sua decisão. O alvará de soltura chegou a ser expedido, mas não efetivado.
Foi somente no início da noite em que prevaleceu o bom senso.
Diante desse grotesco impasse, os autos do habeas corpus foram enviados ao gabinete do presidente do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, que, em respeito à legislação em vigor e prestigiando o quanto havia decidido o desembargador Gebran Neto, assentou: “Considerando que a matéria ventilada no habeas corpus não desafia análise em regime de plantão judiciário e presente o direito do Desembargador Federal Relator em valer-se do instituto da avocação para preservar competência que lhe é própria, determino o retorno dos autos ao Gabinete do Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto, bem como a manutenção da decisão por ele proferida”.
Moral de todo esse desnecessário e humilhante périplo: será que o desembargador Rogério Favreto desconhece regras comezinhas de competência? Será mesmo que tinha dúvida quanto à autoridade coatora? Deixou ele de consultar o disposto no artigo 2.º, parágrafo único, da Resolução n. 68/2009, regente do Plantão Judiciário no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, que proíbe a reiteração de pedido, perante o Plantão Judiciário, quando já anteriormente apreciado pelo órgão judicial de origem?
Dúvida não tenho de que, se a tendência de setores da magistratura pender para a politização de suas respectivas decisões, atropelando a ordem institucional, certamente que o Judiciário brasileiro continuará perdendo credibilidade!
*José Rogério Cruz e Tucci, advogado. Professor titular da Faculdade de Direito da USP. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas
O Estado de São Paulo
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