J.R. Guzzo:
Poucos fatos ilustram tão bem esse comportamento como a reação da maioria das classes intelectuais brasileiras, ou da chamada “esquerda” nacional, diante da morte de Fidel Castro. Boa parte de seus militantes já cometeram suicídio mental há muito tempo; consideram que Fidel é um herói dos nossos tempos, e aí realmente não há nada que valha a pena comentar. Outra parte, e é nisso que está a complicação, propõe uma impossibilidade: defender o personagem central de uma ditadura que já está aí há 57 anos, com base na força militar bruta, e, ao mesmo tempo, sustentar que são a favor da democracia. Conseguem, apenas, deixar claro que abdicaram do trabalho de pensar. O jornalista Reinaldo Azevedo resumiu com perfeição, neste espaço, o defeito terminal que impede a esquerda brasileira – e a mídia que vai em peso atrás dela ─ de funcionar como um ente racional ao se manifestar sobre a morte de Fidel: seus integrantes acham que ele deixou “um legado ambíguo”, ou controvertido, ou impossível de se definir em termos de “certo ou errado”. Que diabo estão falando? A visão mais direta dos fatos, diz Reinaldo, mostra que não há “ambiguidade” nenhuma, nem “controvérsia”, nem dúvidas de natureza lógica. Fidel foi um dos inimigos mais agressivos da liberdade que a América Latina jamais conheceu. Nenhum outro regime do continente se valeu tanto da repressão como a Cuba de 1959 para cá. Fidel jamais permitiu eleições, liberdade de imprensa, partidos de oposição, sindicatos livres, direitos individuais ─ nada, simplesmente, que pudesse lembrar o funcionamento de uma democracia. Qual é a dúvida, então? O bem e o mal não poderiam estar mais claros.
Sobra, na defesa de Fidel feita pelos intelectuais brasileiros, uma conversa rasa, paupérrima, que em nada se assemelha a um conjunto de argumentos. Segundo essa prosa, o mérito do personagem está em ter eliminado o “analfabetismo”, dado leite às crianças cubanas, reduzido as cáries dentárias e coisas dessa envergadura; nenhum menção jamais é feita aos países que fizeram tudo isso, e muitíssimo mais, sem sacrificar uma única liberdade pública ou privada. Sim, Cuba vive há quase 60 anos numa ditadura – mas os dentes das pessoas estão uma beleza. É a conclusão, pelo jeito, que conseguiram construir. Chegou-se, até mesmo, a apontar a excelência dos festivais de cinema, literatura ou música que a “revolução” teria trazido para Cuba – algo realmente extraordinário, para um país que praticou durante décadas uma das censuras mais rigorosas do planeta. Pessoas que receberam instrução, inclusive universitária, e repetem essas coisas, vivem num mundo morto. Condenaram-se a acreditar que estão obrigatoriamente certas em tudo o que tem dentro das próprias cabeças. Ficaram tão acostumados a achar que têm razão que não conseguem mais lidar com a razão – a ponto de sustentarem que é possível, perfeitamente, haver democracia sem liberdade. Passaram a vida praticando esse vodu político; agora não têm mais energia para mudar.
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