Roberto DaMatta:O Globo
Os escândalos e a inverossímil corrupção que vivemos têm um denominador comum. Na teoria corrente, trata-se da óbvia apropriação do público pelo particular. Sociologicamente, porém, eles são um elo da nossa imensa capacidade de driblar a igualdade, trocando-a por simpatias pessoais.
Mudamos leis para não mudarmos o que Tocqueville chamava de “hábitos do coração”. Essas “segundas naturezas” que usamos sem pensar porque elas estão tão dentro de nós que não as enxergamos.
Os abusos do universo público pelos partidários e amigos resultaram na prisão de uma elite bandida, a qual, por sua vez, provocou imediatamente fortes articulações para limitar um chamado “abuso de autoridade” e a anistia de crimes que levariam ao esvaziamento da Lava-Jato.
Essa é a prova cabal da nossa aversão à igualdade. Que o povo negro e pobre seja alvo da igualdade perante a lei não é problema. A coisa, porém, se transforma em problema quando os ladrões formam uma súcia de parlamentares, doleiros e empresários. Nesses casos, causa repugnância a ideia de que a lei “deve valer para todos”, inclusive para o “governo”, a família e os amigos. Contra tal acinte, legisla-se em causa própria.
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Como exercer a igualdade na terra do “Você sabe com quem está falando?”, onde o poder é centralizado, hierarquizado, avesso à inclusão e fraternalmente dividido com os amigos?
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Nossa resistência em dividir leva a um paroxismo centralizador, que esconde do cidadão a riqueza produzida por todos, mas controlada pelos poucos que estão no poder. É fácil reduzir salários de funcionários, mas não se cogita sair dos palácios, renunciando a um aristocrático estilo de vida.
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A República funciona como monarquia. O que poderia disciplinar a ambiciosa elite capitalista termina por colocar num mesmo ralo governo e empresários. Daí a roubalheira estruturante e estrutural. Felizmente, existe uma “imprensa comprada” para denunciá-la, algo que os nazistas de esquerda e de direita querem cercear. Essa é a imprensa que divulga como se esbanja dinheiro público mantendo — mesmo debaixo de uma crise nunca antes vista neste país — um estilo de vida palaciano e moleque.
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Nesta postura, a ética da amizade engloba a ética pública. O que seria de todos passa a ser propriedade dos poderosos legalmente — notem o paradoxo — acima da lei.
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A patologia que experimentamos não vem de mais-valias absurdas. Vem da impossibilidade de punir governantes e de descobrir que roubar e governar são sinônimos. Quando a administração transforma ideologicamente a insídia em valor, descobrimos assustados que o crime não é desvio, mas norma.
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Eis o sinal, dizia Durkheim, de doença.
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Se roubar a sociedade é um valor, assassinamos a igualdade, engendrando uma classe de ladrões ilustres e graduados: presidentes, governadores, senadores, deputados, juízes, delegados, deputados, grandes empresários e o que mais não sejam. Papéis sociais couraçados pela honra e competência desmancham-se. Eles não servem mais à coletividade, mas aos seus ocupantes, amigos e partidos. É o fim...
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O privilégio — esse pai da corrupção — está no uso de cargos públicos para obter vantagens particulares. A indiferença ao conflito de interesse exigido por certos papéis explica a nossa desmoralização. Quando o papel de ministro corre o risco de ser canibalizado pelo de proprietário de um apartamento de luxo, não se pode mais fingir. O bem-estar instável de um país comandado por um governo tampão e emergencial demanda — conforme ocorreu — que se fique do lado do Brasil, e não do amigo.
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Liquidamos a nobreza mas, como compensação, mantivemos um sistema jurídico bizantino, com múltiplos privilégios. Para os conflitos do dia a dia, inventamos o “Você sabe com quem está falando?” sem discutir as amizades cujas regras implícitas têm promovido vergonhosas tragicomédias.
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Com 40 anos escrevi tudo isso (e mais alguma coisa) em “Carnavais, malandros e heróis”. Hoje, aos 80 e desolado, observo uma batalha entre “direita” e “esquerda” arrebentando o Brasil, quando a verdadeira questão é a da igualdade. A igualdade que se faz quando há coragem de dizer não a si mesmo, pois é isso que permite — como escreveu Oliveira Vianna em 1925 — a começar a resistir aos amigos!
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Meu abraço afetuoso ao Edson Celulari. Meus agradecimentos ao Ruy Castro, que me enviou o seu brilhante prefácio ao livro “Memórias de um sargento de milícias” — essa cartilha do Brasil. E minhas condolências aos admiradores dos revolucionários que, no poder, viram tiranos.
extraídaderota2014blogspot
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