DEMÉTRIO MAGNOLI FOLHA DE SP
Depois da cisão, a
conciliação. Concluída a votação do impeachment, o PT tirou seus cães
furiosos da cena e, no lugar deles, escalou vozes moderadas. Kátia
Abreu, uma liberal de estimação, apelou ao sentimento de seus pares; um
sereno Jorge Viana invocou a necessidade de preservar "o dia de amanhã
aqui no Senado". No fim, graças à notável criatividade jurídica de
Ricardo Lewandowski, que propiciou a mudança do artigo 52 da
Constituição pela vontade minoritária de um terço dos senadores,
obtiveram a manutenção dos direitos políticos de Dilma Rousseff. Ali,
plantou-se a mudinha de uma espécie singular de "união nacional".
"A
política da conciliação é um antídoto contra o levante, um relaxamento
da tensão entre a vida como ela é e a vida como deve ser", escreveu
James David Barber. A "vida como deve ser": o retorno à velha ordem,
abalada nessa quadra de crise pelo impeachment e pelos processos contra
políticos e empresários. A política da conciliação, explicou Barber, "é
um romance de restauração": no caso do Brasil, a recuperação do
privilégio da elite política de submeter a coisa pública às redes de
interesses partidários e privados. A absolvição parcial de Dilma
descortina um caminho promissor: perdão e redenção.
"Não
poderíamos fazer um acordo com os nossos algozes", disfarçou Humberto
Costa, como se pudesse permanecer em segredo o pacto costurado na
residência de Renan Calheiros e avalizado por Lewandowski. Do ponto de
vista do PT, cisão e conciliação funcionam como polos complementares de
uma mesma estratégia. A página do golpe não foi virada, mas passa a
conviver com um novo texto. Quem liga para a coerência? A denúncia do
"golpe parlamentar", cantada por Dilma, ecoada por "intelectuais
orgânicos" e artistas, continuará a desempenhar as funções subsidiárias
de reunir a base militante e oferecer um discurso eleitoral. Mas será
devidamente subordinada ao imperativo da conciliação, que promete
reerguer uma ponte bombardeada. Lula precisa de perdão e de redenção.
O
senador Álvaro Dias enxergou na manobra um "jeitinho brasileiro"
destinado a "proteger a poderosa Dilma". Mas Dilma funciona no episódio
como mero precedente: a chance de fraudar as leis à sombra do STF. Se um
"jeitinho" vale em benefício dela, por que expedientes similares não
valeriam para Eduardo Cunha e muitos outros, presos na teia das
investigações judiciais? Daqui em diante, ao menos em tese, a perda do
mandato seria apenas um ponto de partida rumo à redenção eleitoral. Os
senadores da maioria governista que votaram com o PT não protegiam
Dilma, mas compravam um seguro contra acidentes. O bravo Calheiros, em
particular, um personagem arqueado sob o peso de tantos processos,
operou em defesa própria, enviando uma mensagem ao governo Temer. Ele
está dizendo que a desordem foi longe demais: é tempo de construir uma
ampla coalizão política contra a Lava Jato.
No Brasil oficial,
esse mundo assolado pelo medo, angustiado pelas incertezas, avança a
"pacificação" invocada por Temer em seu discurso de posse. Se a
impunidade absoluta está morta, que tal inventar o perdão? A
reunificação, ainda uma planta tenra, já parece capaz de dar frutos. O
PSDB e o DEM rejeitaram o santo pacto em plenário para, na sequência,
recuarem da efêmera intenção de contestá-lo no STF. "A questão essencial
está resolvida", decretou Aécio Neves, como quem desenha um ponto final
–apenas para, sob pressão da opinião pública, recuar do recuo no dia
seguinte, apresentando o recurso judicial.
O impeachment de Dilma
e a patética posse de Temer assinalam uma crise maior. Estilhaça-se a
"Nova República" proclamada no discurso de posse de Tancredo Neves, lido
por José Sarney há 31 anos. O ensaio de conciliação é uma tentativa de
colar seus cacos, salvando "o dia de amanhã" de uma elite política
acossada.
extraídadeavarandablogspot
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