ZANDER NAVARRO ESTADÃO
Em 1571
Michel Eyquem, conhecido como Montaigne, o nome das terras que herdou,
decidiu dedicar-se à interpretação da natureza humana. Legou-nos um
livro brilhante, Os Ensaios” (Companhia das Letras). Foi escolarizado
primeiramente em latim e leu todos os clássicos do pensamento social. O
volume deveria ser leitura compulsória para todos os que almejam
desvendar os mistérios e significados da ação humana.
A versão
definitiva e póstuma é de 1595 e nela Montaigne impôs a si próprio
explicar por que “os que se empenham em examinar as ações humanas jamais
ficam tão atrapalhados como para juntá-las sob a mesma luz, pois
comumente elas se contradizem de modo tão estranho que parece impossível
que venham da mesma matriz”. A inconstância humana foi um dos seus
temas favoritos, pois “nosso modo habitual é seguir as inclinações de
nosso desejo, para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo,
conforme nos leva o vento das ocasiões”. Em consequência, “não vamos,
somos levados, como as coisas que flutuam, ora suavemente, ora com
violência”.
Os episódios políticos recentes em nosso país, até
chegar ao impeachment e ao inacreditável “fatiamento” da decisão final,
nos remetem à sabedoria contida naquele livro de quase cinco séculos e à
explicação que nos propõe acerca das escolhas humanas – “em quem se
fiar para saber o que é louvável?”. Ou, então, será que “os que tentaram
reformar os costumes do mundo por novas opiniões reformaram os vícios
da aparência, (mas) os da essência os deixam lá” e, assim, o que no
passado seria condenável passou a ser naturalizado, como temos observado
regularmente em outros aspectos da vida social, segundo os “vícios de
outrora, costumes de hoje”? Se a presidente foi apeada do poder, por
seus malfeitos, mas pode seguir na vida pública, por que todos os demais
em situação análoga não serão igualmente beneficiários de tamanha
bizarrice? Que maquinações teriam sido urdidas, que os cidadãos, em sua
inocência política, desconhecem? Como seria importante saber as reais
razões que motivaram a estapafúrdia decisão, pois “é justo que se faça
grande diferença entre os erros que vêm de nossa fraqueza e os que vêm
de nossa maldade”, destacaria o filósofo seiscentista. Se houve má-fé e
intenções inconfessadas, muito em breve a fatura será cobrada e nós, os
brasileiros, vamos pagar a conta, como tem sido o costume.
Similarmente,
a difundida fabulação de um suposto golpe atende aos mesmos
indisfarçados interesses, seja de Dilma, a personagem principal da
trama, ou, então, do campo petista diretamente atingido. É a estratégia
ideal, que os anos vindouros comprovarão. Os petistas sabem, como
alertou Montaigne, que “assim como o prato da balança pende
necessariamente quando foi carregado, assim o espírito cede às coisas
evidentes” e o uso repetido, ad nauseam, do incriminatório “golpista”,
em todos os momentos e situações, acabará se enraizando no coletivo
social e se tornará uma “coisa evidente”. É sina da qual o governo Temer
não se livrará, pois sempre surgirá um militante para gritar o bordão e
gerar o embaraço público. O comportamento social tende à simplificação,
aqui se diferenciando dos pensadores, não se aplicando aos cidadãos a
frase de Dante que Montaigne cita em Os Ensaios, a qual nos ensina: “não
menos que saber, duvidar me agrada”.
Aqui existe outro
aprendizado consagrado: na vida social, a repetição, ainda que absurda,
acaba aprofundando suas raízes e a vasta maioria dos cidadãos prefere
viver sob argumentos dúbios, ou até falsos, a seguir sob incertezas. Se a
sintaxe do “golpe” é insustentável, pouco importa, pois é preferível
viver em acordo com algum catecismo, qualquer que seja, porque “a alma
que não tem objetivo estabelecido se perde”. E com aguda percepção
Montaigne ainda insistiu sobre a leveza das decisões humanas, segundo as
quais “é preciso tudo explorar e comprar de cada um segundo sua
mercadoria, pois em casa tudo serve; e até a tolice e a fraqueza alheia o
instruirão”. E assim, infelizmente, “todos nós estamos fechados e
encolhidos em nós mesmos e temos a visão limitada ao comprimento de
nosso nariz”. O comportamento dos indivíduos, dessa forma, acaba sendo
equívoco e sujeito a erros, pois “é em meio de brumas e às apalpadelas
que somos levados ao conhecimento da maioria das coisas”.
Encurralado
pelos acontecimentos, o campo petista precisa da verborragia do “golpe”
para não desaparecer. Sua ambição é a conquista do poder e se se curvar
deixará de ser um partido político. Por isso a vitimização servirá
tanto à biografia de Dilma como ao partido, segmentando o mundo da
política, aos olhos dos cidadãos, entre os “golpistas” e os
“perseguidos” petistas. E na política, binômios simplificadores sempre
são mais promissores.
É uma fábula pobre, mas em ambiente
rebaixado como o nosso será suficiente e talvez em 2018 alguns efeitos
do arranjo terminológico já possam ser colhidos. Afinal, como destacou o
filósofo das terras de Montaigne, em tais contextos os escrúpulos não
contam, porque “quem opõe o custo ao fruto da virtude, este é, decerto,
bem indigno de sua companhia e não conhece suas graças nem seu bom uso”.
Ao campo petista não interessará, nesta conjuntura, “que sua
consciência e sua virtude reluzam em suas palavras, e tenham apenas a
razão como guia”. A mentira, esta, sim, tem sido mais produtiva em seus
resultados.
Qual será o preço da farsa ora em curso, seja a
artimanha do Senado ou o delírio do golpe? Não sabemos, mas novamente o
genial pensador nos ensinou: “A maldade absorve a maior parte de seu
próprio veneno e envenena-se (…), pois a razão apaga as outras tristezas
e dores, mas engendra a do arrependimento, que é mais grave, uma vez
que nasce no interior, como o frio e o quente das febres”.
*Sociólogo e pesquisador em ciências sociais
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