O AUTISMO POLÍTICO
Denis Lerrer Rosenfield
O PT mudou e a sociedade brasileira também. O PT
mudou, pois não mais segue os preceitos da “ética na política”,
alterando as suas idéias e não mais se preocupando com a moralidade pública. O
resultado prático das declarações de alguns de seus dirigentes é o
desconhecimento completo de que está acontecendo, uma espécie de “autismo
político”. A sociedade brasileira mudou, não mais aceita como antigamente
infrações ao princípio da “ética na política”, exigindo dos nossos governantes
um comportamento exemplar. Os brasileiros acreditaram no candidato Lula e no
seu partido, não mais se satisfazendo, agora, com tergiversações, nem com demagogias.
Acontece, contudo, que o “autismo político” se manifesta pelo desconhecimento
dessa mudança na mentalidade brasileira, que já defende como bandeiras suas a
moralidade, a liberdade e a democracia. A opinião pública não se mostra propícia
a aventuras, como as que começam a ser propostas pelo agora deputado José
Dirceu, por determinadas tendências do PT, pela CUT e por sua base mais
claramente revolucionária como o MST. Ao sair da Casa Civil, o Dep. José Dirceu
adotou um discurso marxista, baseado na luta de classes, sendo logo seguido por
seus crentes, que esbravejaram contra as elites e criaram o fantasmático
“golpe”, que estaria se esboçando. Em vez de assumirem suas próprias
responsabilidades, adotaram esses dirigentes e grupos políticos uma estratégia
de radicalização política, produzindo um bode expiatório, que teria a função de
ocultar as mazelas do partido/governo dominante, e criando ainda condições para
um populismo que teria como alvo final a política econômica.
O discurso sobre as elites conservadoras que estariam tramando a instabilidade
do governo não deixa de ser engraçado, não fosse trágico na situação atual. As elites, que criaram a instabilidade atual, são
constituídas pelo governo atual, pelo PT e pelos partidos aliados. Ou seja,
trata-se de uma luta interna ao PT e entre esse e seus aliados. O
detonador de todo esse processo, o Dep. Roberto Jefferson era, naquele então,
presidente do PTB, interlocutor privilegiado do Presidente Lula e do Ministro
José Dirceu, além de outros próceres petistas. Chegou a ganhar um cheque em
branco do próprio Presidente Lula e recebia ministros em sua casa. Os por ele
denunciados são parlamentares do PP e PL, além da cúpula do próprio PT. As
ditas ações desestabilizadoras da elite são do próprio governo e de seus
partidos. A esquizofrenia política é galopante. O problema é que ela não é
fruto de um comportamento individual, mas de uma coletividade política.
Acreditava-se, pelo menos formalmente, que o PT teria, pelo menos no Campo
Majoritário, feito o luto de idéias marxistas. Ora, o pragmático ex-ministro
José Dirceu mostra agora a sua alma cubana. Imediatamente após sua queda,
assume um discurso de combate fundado na “luta de classes”. O instrumental
explicativo adotado foi o do marxismo, insistindo na divisão radical da
sociedade em si mesma, no enfrentamento contínuo, que teria como desenlace a
instalação de uma sociedade “socialista”, autoritária, no país. Só faltou
combinar com uma boa parte do empresariado nacional, inclusive em setores
financeiros, que tem elogiado a política governamental adotada. Luta de quem
contra quem? Só se for de um fantasma com outro.
Mas a imaginação é inesgotável, sobretudo para os que vivem em velhas
concepções, embora necessariamente limitada em seu arcabouço. No discurso de
posse da nova ministra Dilma Roussef, na Casa Civil, o Dep. José Dirceu a
tratou de “camarada de armas”. Referência explicita a uma história comum e
implícita aos mesmos objetivos que, por outros meios, continuariam a ser
perseguidos. Quando “camaradas de armas” não lutaram, conforme foi afirmado,
pela “redemocratização do país”, mas pela instauração de uma sociedade
socialista, que teria em Cuba seu exemplo. A democracia não fazia parte de suas
propostas, senão como meio para a realização de seus fins. Há uma nítida
falsificação da história. Aliás, eles poderiam apresentar documentos de seus
grupos guerrilheiros proclamando pela democracia, considerada universalmente,
como fim em si mesmo. Seria uma contribuição importante para a historiografia
brasileira.
Se há um golpe em curso, só pode ser o do estelionato eleitoral. Se os
responsáveis petistas quiseram dizer isto, estarão eles, na verdade, fazendo
uma autocrítica, aliás muito salutar e necessária. Infelizmente, não
parece esse ser o caso. O que está em questão é uma manobra diversionista, que
procura culpar o PSDB e o PFL pela crise atual. Ora, esses partidos foram
espectadores do acontecido e, como quaisquer partidos, estão se beneficiando de
uma situação inusitada há seis meses atrás, quando quase todos davam como certa
a reeleição do Presidente Lula. Estão sendo, inclusive, comedidos e
responsáveis, não aceitando esse tipo de provocação. O preocupante, contudo, é
a ressurgência de cacoetes autoritários, como os que se baseiam nessas
pseudo-explicações de “luta de classes”, de “elites” e de “golpe”. O seu
correlato é uma espécie de criminalização da oposição, como se essa fosse um
inimigo que deveria ser exterminado. Há uma nítida indisposição dessas elites
petistas em lidarem com a democracia, com a unidade no dissenso.
A sua expressão mais imediata é o fortalecimento dos elos do PT com os
“movimentos sociais”, leia-se com propostas da esquerda autoritária, que tem na
luta contra a economia de mercado e contra a democracia os seus eixos
condutores. Assim fazendo, essa reconfiguração do PT miraria na política
econômica do próprio governo petista, por ser essa “capitalista” e
“neoliberal”. A autofagia se apresenta em toda a sua nudez. E ela, como dizia
Nelson Rodrigues, será castigada.
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