PUBLICADO NO JORNAL O GLOBO DO DIA 24/10/2012
A trajetória mais
que centenária da República brasileira é acidentada. Para a nação conseguir
completar 27 anos ininterruptos de estabilidade institucional, feito
inédito na Era republicana, ela cumpriu tumultuado percurso de crises, com
dois longos períodos de trevas - no Estado Novo varguista e na ditadura dos
militares, da qual o país saiu unido em torno de um projeto de
redemocratização, em que se lançou sem violência, inclusive com a adesão de
políticos do antigo regime.
Desde 1985, quando
a posse de um presidente civil (Sarney) serviu, e serve, de registro do fim
do ciclo militar autoritário, as instituições da democracia representativa
têm amadurecido e se consolidado, essencial para o desenvolvimento
econômico - impossível num quadro de insegurança jurídica - e, por
decorrência, o aprimoramento social.
O desfecho do
julgamento do mensalão entra para a História como um dos pontos altos neste
processo de amadurecimento do regime, e torna o Brasil um exemplo ainda
mais positivo numa região intoxicada pelo antigo e pernicioso vírus do
nacional-populismo latino-americano, em nome do qual fundam-se regimes
autoritários pela via de mecanismos apenas na superfície democráticos.
Sempre em nome da "justiça social".
Ao condenar por
corrupção passiva e formação de quadrilha a cúpula do PT da época da
primeira campanha vitoriosa de Lula, em 2002, e da primeira parte do seu
governo até a eclosão do escândalo, em 2005, o Supremo Tribunal Federal
(STF) reafirmou de forma enfática a separação entre os Poderes e a
independência do Poder Judiciário, questão pétrea em qualquer democracia
que mereça ser chamada pelo nome.
Quando um dos
beneficiários do mensalão, o ainda deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ),
sentindo-se acuado em lutas internas na base do governo, resolveu denunciar
o esquema, ninguém poderia antever que José Dirceu, ministro-chefe da Casa
Civil, José Genoíno e Delúbio Soares, presidente e tesoureiro do PT, iriam,
algum dia, ser punidos na Justiça.
A quase certeza da
impunidade que costuma acompanhar os poderosos no Brasil deve ter animado a
direção dos bancos Rural e BMG a participar da fraude financeira dos
empréstimos forjados para lavar o dinheiro do mensalão surrupiado dos
cofres públicos (BB/Visanet e Câmara dos Deputados).
A tendência do
Brasil tem sido de avanços. A renovação da classe política não é a ideal,
em velocidade e qualidade, mas não se deve esquecer que o país das
tentativas de tomadas do poder pela força, duas delas bem-sucedidas, cassou
no Congresso o mandato do primeiro presidente eleito pelo voto direto
depois do apagão da ditadura militar, sem nada de anormal acontecer nas
ruas - e nos quartéis.
Em certa medida, a
condenação de petistas, aliados e sócios no valerioduto pelo Supremo repete
o feito do Congresso em 1993. Logo nas primeiras condenações do julgamento,
o "New York Times", ao divulgar a notícia, acrescentou que o fato
renovava as esperanças dos brasileiros na possibilidade de poderosos serem
punidos por corrupção, mercadoria rara na vida pública nacional. Aconteceu
no impeachment de Collor e agora no mensalão. Desta vez, porém, o alcance
político chega até a ser mais amplo, com a fixação de limites nítidos para
o trânsito dos poderosos de ocasião na vida pública.
O procurador-geral
da República Cláudio Fonteles construiu sólida denúncia contra os
mensaleiros, tachou a cúpula do esquema de "organização
criminosa" e teve êxito, em 2007, ao pedir a instauração do processo
pelo STF. Cinco anos depois, já com a denúncia sendo defendida pelo
sucessor de Fonteles, Roberto Gurgel, a "organização criminosa" e
boa parte de seus beneficiários foram condenadas, com José Dirceu à frente,
considerado por Fonteles o "chefe da organização".
Toda a tramitação
do caso tem sido exemplar. O MP, com base em depoimentos perante CPIs,
investigações e perícias policiais, encaminhou denúncia consistente. O
relator, ministro Joaquim Barbosa, executou trabalho minucioso de tomada de
depoimentos pelas justiças regionais e no encaminhamento dos seus votos ao
restante do Pleno. O mesmo aconteceu com o outro polo do julgamento,
Ricardo Lewandowski, revisor do processo. Só a má-fé leva alguém a enxergar
algum viés político nas condenações por um Pleno composto em sua maioria
por ministros indicados nos governos petistas de Lula e Dilma - mais um
fator de enobrecimento da atuação da Corte.
Concluída a
avaliação do mérito, na segunda-feira, na 39ª sessão do julgamento, o Supremo
deixa um acervo de discussões e definições técnicas importantes sobre os
crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha de
"colarinhos brancos", por exemplo, para balizar as instâncias
inferiores da Justiça com uma jurisprudência mais adequada a um tipo de
delinquência cometida em gabinetes fechados, quase sempre sem provas
materiais, mas nem assim pouco ofensiva para a sociedade.
Advogados de defesa
foram surpreendidos por uma interpretação de instrumentos já existentes na
legislação penal que levou a maioria dos ministros a considerar como
elementos fortes de convicção para condenações indícios e provas
testemunhais mesmo não colhidas perante juízes. Houve, ainda, a aplicação
do conceito do "domínio do fato" , pelo qual alguém pode ser
condenado sem provas materiais, mas por ter coordenado a execução do crime.
Afinal, chefes de esquemas de corrupção em altas esferas costumam não
deixar rastros.
As inúmeras
intervenções dos ministros nos debates profundos que travaram provam que
vários deles entenderam muito bem do que se tratava o mensalão. Não foi um
caso comum de corrupção. O presidente da Corte, ministro Ayres Britto, em
uma das sessões, qualificou: tratava-se de "(...) um projeto de poder
quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de continuísmo seco, raso.
Golpe, portanto".
Como não qualificar
como "golpe" o desvio de dinheiro público - e que fosse privado -
para cooptar pecuniariamente legendas menores, a fim de dar sustentação
perene ao grupo no poder? Celso de Mello, decano da Corte, um dos que
aceitaram a denúncia de "formação de quadrilha", considerou o
grupo do mensalão uma "sociedade de delinquentes", formada para
mudar, por baixo do pano, o sentido do voto dos eleitores, adulterar a
representação política, num projeto de eternização no poder. O mensalão
visou a abalar, nas palavras de Joaquim Barbosa, "as bases do sistema
democrático".
O Supremo, ao
condenar mensaleiros, estabeleceu forte linha de defesa do estado
democrático de direito. Não será por falta de balizamento jurídico que os
homens públicos em geral deixarão de exercitar a política como deve ser
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