por J.R. Guzzo
Estatísticas, como se sabe desde que a primeira delas apareceu sobre a face da Terra, são uma das realidades mais flexíveis que o ser humano pode encontrar — tão flexíveis quanto uma tira de elástico ou, para ser mais científico, quanto o grafeno que tanta atenção desperta no presidente Jair Bolsonaro. Já os fatos são coisa mais dura que uma liga de carbono. Não adianta puxar daqui ou dali, ou fazer massagem, ou querer moldar como em massinha de modelagem para criança — eles continuam exatamente como são.
Não adianta nem mesmo enterrar; basta cavar um pouco em volta e os fatos aparecem exatamente como eram antes de ser escondidos. O resultado é que números, muitas vezes, não fazem a realidade, assim como um monte de tijolos jogados no chão não faz uma casa. Fatos, ao contrário, mostram o que é real e o que é falso.
O Brasil destes tempos de cólera virou um paraíso para as estatísticas, as porcentagens e os números — e, em consequência disso, um paraíso para os passadores de moeda falsa, os embusteiros e os especialistas na arte de fabricar a chamada “mentira técnica”. Nem é preciso quebrar muito a cabeça com isso.
Quando se leva em conta que essa caçamba de algarismos está sendo abastecida pelos governos, e carregada para o público por meios de comunicação engajados numa espécie de campanha pela “paralisia nacional do Brasil por tempo indeterminado”, fica na cara que estão tentando enganar você. Afinal, governantes mentem por princípio; é de sua natureza. “Há alguma dúvida?”, perguntam eles. “Então, minta.”
A trapaça aritmética é um vírus potente, veloz e sem vacina conhecida; mente quem quiser, a qualquer minuto, em qualquer lugar do mundo, e em todas as oportunidades que aparecem. Afinal, nada agrada tanto a governos, de qualquer natureza, quanto a possibilidade de entupir o público com informações que não trazem o risco de provocar nenhuma ideia. Sirva a ele números que não podem ser comprovados.
Chame para seu lado o maior número possível de especialistas que se especializam em repetir o que você quer que o cidadão comum acredite. Repita, exagere e produza o máximo de fumaça. Pronto: um caminhão de gente vai acreditar no que você está dizendo.
É o que acontece neste momento no Brasil em relação à covid-19. Poucas vezes, na história deste país, se mentiu tanto com a utilização de números. Já um fato é uma coisa real que podem ser demonstrada; é um outro animal. Fatos não se importam com seus sentimentos, nem mudam de acordo com suas convicções, crenças e desejos.
Por isso mesmo, em ocasiões como a de agora, é essencial não perder o contato com eles. A epidemia existe, impõe sofrimento e mata — ninguém discute isso. Mas é certo que junto com a covid-19 há outras realidades. Algumas delas são muito úteis para entender melhor o que está acontecendo a nossa volta. Vamos a dez casos práticos.
1 — A epidemia vai levar a corrupção no Brasil a níveis desconhecidos. Há, até o momento, mil municípios com casos registrados, mas cerca de 2 mil já decretaram “estado de calamidade”. Por que será? Porque isso lhes permitirá fazer compras e assinar contratos sem a necessidade de concorrência pública. Alguém acha que tudo será feito sem que prefeitos e suas turmas roubem nada? Há também os governos estaduais. Acaba de estourar o caso da compra de respiradores no Rio de Janeiro por quase R$ 200 mil a peça. Podem ser encontrados por R$ 60 mil no mercado. Para essa gente toda: interessa ou não que o pânico continue pelo maior tempo que for possível?
2 — A violência, as arbitrariedades e a agressão dos direitos individuais pelas autoridades, sobretudo as que são praticadas por guardas municipais e agentes da fiscalização, aumentam a cada dia. Ficou conhecido em todo o Brasil o caso da mulher que foi presa, agredida e algemada em Araraquara, no interior de São Paulo, por recusar-se a levantar do banco onde estava sentada numa praça vazia. Em Santos, o prefeito tenta impedir a entrada na cidade de carros que tenham chapa de outros municípios. Em Ilhabela estão exigindo a apresentação do título de eleitor para quem quer entrar no território municipal. Por acaso as cidades de Araraquara, Santos e Ilhabela têm uma Constituição diferente da que vigora na cidade de São Paulo, por exemplo, onde ainda não há essas exigências? Não estão no mesmo país, e no mesmo Estado? É nisso que dá quando se entrega poder a gente que imagina saber tudo e ignora tudo. A democracia está indo para o diabo. Cuidado: não é certo que lhe devolvam depois tudo o que estão lhe tirando agora.
3 — Os governos estaduais criam um ambiente de agitação permanente na população. Foram incapazes, até agora, de dizer uma única palavra de esperança; ao contrário, anunciam diariamente que tudo vai piorar, que não há saída que não seja obedecer a suas ordens e que a paralisação do país tem de ser ainda mais radical. No deserto em que se transformou a cidade de São Paulo, o governador do Estado acha que continua havendo gente demais na rua: 50% das pessoas, segundo ele, estão circulando em calçadas onde não se vê ninguém. Seu plano é aumentar para 70% o número de pessoas trancadas em casa. Pior que tudo: ameaça prender quem não obedecer ao governo.
Como vai fazer isso, na prática? Quantos cidadãos, exatamente, ele pretende prender num Estado com 45 milhões de habitantes? Se 5% da população paulista não cumprir alguma ordem, será preciso jogar na cadeia mais de 2 milhões de pessoas. Outra pergunta, para oficiais da PM, juízes e promotores: vão prender trabalhadores quando estão soltando bandidos todos os dias, para que não sejam infectados na prisão? Nesse caso, terão de soltar também os que acabaram de ser presos por desagradar ao governador. Ou por acaso eles ficarão imunes ao vírus quando trancados no xadrez? É uma palhaçada.
4 — Está se criando um clima esquisito. Em São Paulo, o governador faz ameaças. A PM age com uma cautela que se choca com as ordens que vêm de cima. Seu comando diz que os 100 mil soldados e oficiais da polícia estão fazendo uma “campanha de reeducação”; não mencionou, até agora, a palavra “prisão”. O governador não explicou como pretende agir caso aconteçam episódios de indisciplina.
5 — Criou-se um deserto jurídico no Brasil. O STF abandonou seu dever de exigir a obediência à Constituição ao negar-se a interferir em qualquer violação das leis nacionais — pois decidiu que “cabe aos Estados e autoridades locais” decidir tudo o que possa dizer respeito ao combate à covid-19. E se eles desrespeitarem o direito de ir e vir, ou a propriedade privada, ou outras garantias legais? É o que está acontecendo todos os dias. A Justiça, na prática, entregou o país à ditadura de governadores e prefeitos.
6 — Governadores e prefeitos estão agindo de maneira óbvia, em tudo o que fazem, para tirar proveito político pessoal da epidemia. Exploram abertamente o natural medo de morrer das pessoas; acham que podem ganhar votos, no futuro, vendendo agora o confinamento como a única solução. Quando a onda passar, dirão que foram eles que salvaram vidas. Eliminam a produção, destroem as próprias finanças, e depois exigem bilhões em verbas do governo federal para pagar a folha do funcionalismo; vendem a ideia de que isso é uma “obrigação de Brasília”, coisa que sempre pega bem com o público. Não dizem uma sílaba, naturalmente, sobre o fato de que o “governo federal” não tem e jamais terá um único tostão para “dar” a ninguém. Quem tem é o contribuinte, que está perdendo emprego, negócio, poupança, investimento e capacidade de pagar sequer suas despesas pessoais. Como vai pagar imposto?
7 — Há um boicote sistemático, entre governadores pró-confinamento total e na mídia, ao debate sobre qualquer alternativa ao isolamento social como arma para enfrentar o vírus. Não se admite aí, também, nenhuma possibilidade de aplicar este ou aquele medicamento na terapia da covid-19. A única solução possível é confinamento — ou confinamento. Sugerir qualquer outra coisa é ficar “a favor da morte”.
8 — Esconde-se, desde o primeiro caso de contágio, que o poder público brasileiro tem desprezo absoluto pela saúde da população. É claro. Seus donos se protegem com planos médicos milionários pagos integralmente por você, e vão de helicóptero para os hospitais mais caros do país. Dane-se, simplesmente, que 50% dos 220 milhões de brasileiros vivam até hoje sem redes de esgoto. Nenhum dos comandantes da “guerra à covid-19”, hoje tão angustiados com o “colapso” das UTIs, jamais ligou para o fato de que o SUS está em colapso há trinta anos. Prefeituras que hoje se apresentam como heroínas da saúde pública, como a de São Paulo, até outro dia promoviam a poluição maciça dos mananciais de água da cidade atraindo favelas para ocupar suas margens. A favela paulistana de Paraisópolis, que jamais despertou meio minuto de preocupação de governadores e prefeitos, tem uma densidade populacional de 45 mil habitantes por quilômetro quadrado. Como pode haver um mínimo de proteção à saúde num lugar assim? O governador ou o prefeito teriam alguma ideia de como fazer cumprir seu “distanciamento social” em Paraisópolis? Quantos metros de distância entre os moradores eles aceitarão? Quantos a PM vai jogar na cadeia para chegar aos níveis ideais de 70% de isolamento exigido pelos doutores? A favela tem perto de 100 mil moradores. Faça suas contas.
9 — Vamos nos afundando cada vez mais num mundo em que os números são falsificados por “especialistas” numa pasta pretensamente racional ou “técnica” de projeções, cálculos, cenários, hipóteses, estudos, pesquisas, estimativas, “modelos matemáticos” e chutes. É para dizer que o vírus está ganhando? Então tudo serve — e tudo é publicado. É daí que vêm as “informações” de que o isolamento tem de durar “até 2022”, ou de que mais de “600 mil” pessoas vão morrer por causa do vírus no Brasil, que o “colapso” das UTIs vai vir agora em maio (caso não venha, dirão que virá em junho), que o “pico” vai acontecer cada vez mais tarde e assim por diante.
10 — Ninguém que está dando as ordens pagará pelas consequências concretas das ordens que dá. Não terão de responder por absolutamente nada, no desastre que será causado; vai ficar tudo de graça para eles. É um sistema que torna inevitáveis as decisões estúpidas.
Revista Oeste
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