por Ives Gandra da Silva Martins O Estado de S.Paulo
A Constituição cidadã de Ulysses Guimarães e Bernardo Cabral, conformada
para reger um país parlamentarista, hospedou, em plenário, uma
República presidencialista. Tal mudança, na undécima hora, não eliminou
mecanismos de equilíbrio próprios do modelo parlamentar, com o que, nada
obstante sua adiposidade, preservou o princípio graficamente enunciado
no artigo 2.º, de que os Poderes são harmônicos e independentes.
Assim é que ao Poder Judiciário, pela sua Corte Suprema, foi atribuída a
função de guardião da Carta Magna (artigo 102), não podendo, nem mesmo
nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão do Legislativo,
invadir a competência normativa deste (artigo 103, § 2.º). Ao Poder
Legislativo impôs que zelasse por sua competência legislativa em face da
atribuição normativa dos outros Poderes (artigo 49, inciso XI). Ao
Poder Executivo outorgou, excepcionalmente, competência para legislar
por medidas provisórias e leis delegadas (artigos 67 e 69), sempre
sujeitas ao aval das Casas de Leis. E no caso de conflito entre Poderes,
às Forças Armadas determinou o dever de repor a lei e a ordem (artigo
142).
Por fim, quanto ao Poder Judiciário (artigos 92 a 126), admitiu que
fosse secundado por duas instituições consideradas essenciais à
administração da justiça: o Ministério Público e a advocacia (artigos
127 a 135).
O constituinte não tornou as duas instituições “poderes”, mas funções essenciais à justiça,
em idêntico patamar. Embora nivelados pelo constituinte, creio que,
numa democracia, exerce o advogado função relevantíssima, pois garante o
direito à ampla defesa, direito esse inexistente ou reduzido à sua
expressão quase nenhuma nas ditaduras.
A estabilidade e a segurança dos cidadãos, portanto, estão no equilíbrio
dos Poderes e na ação de busca de um ideal de justiça, em que advocacia
e Ministério Público procuram a verdade material dos conflitos,
subordinando-a ao crivo imparcial do Poder Judiciário. Infelizmente, o
texto constitucional não tem sido respeitado como deveria ser, havendo
inúmeras ações não admitidas pelo constituinte, que têm provocado
crescente insegurança jurídica tanto nas relações entre cidadãos como
nas destes com o Estado.
Algumas vezes o Supremo tem invadido competências do Poder Legislativo –
como ao admitir que candidato derrotado assumisse governo, quando
afastados governador e vice eleitos, sem respeito ao artigo 81 da Lei
Suprema; ao exigir fidelidade partidária, sem respeito ao artigo 17 da
Constituição; ao criar terceira hipótese de aborto (eugênico) no artigo
128 do Código Penal; ao permitir casamento entre pares de mesmo sexo, em
descumprimento do artigo 226, § 1.º e 5.º. da Carta; ao adotar prisão
de deputados e senadores sem autorização do Senado e da Câmara, em
violação do artigo 53, § 2.º, 3.º e 5.º, da Lei Maior; ao considerar
culpado condenado em segunda instância, contra o inciso LVII do artigo
5.º; e em diversas outras hipóteses. A Corte passou a entender que lhe
cabe legislar no vácuo legislativo.
Por outro lado, o Ministério Público, que não é poder, invade
competências do Poder Judiciário ao pretender, mediante resolução do
antigo procurador-geral, transformar-se em polícia judiciária e adotar
medidas próprias de Poder Judiciário – que não é –, transformando o
Judiciário em mero Poder homologatório de suas decisões persecutórias.
Alguns dos membros do Ministério Público, com vocação cinematográfica,
pretendem que o Congresso Nacional se curve a medidas que visam a tornar
suas funções mais relevantes que as do Judiciário, permitindo-lhes, sem
autorização judicial, prender suspeitos, invadir escritórios de
advocacia – quebrando a inviolabilidade constitucional de outra
instituição de função idêntica à sua (a advocacia) –, obter ilicitamente
provas e atuar com interpretações pro domo sua,
mesmo que desavisadas e injurídicas. Pretendem impor ao Congresso
Nacional, que abertamente criticam, sua forma autoritária de combate à
corrupção.
À evidência, todo verdadeiro cidadão deseja o combate à corrupção, mas que se faça dentro da lei, e não pelo arbítrio de auto-outorgados defensores da moralidade.
Muito embora, o mérito da Operação Lava Jato esteja permitindo ao
brasileiro melhor decidir como votar nas próximas eleições, a democracia
não admite o arbítrio, nem salvadores da pátria.
Exemplo dessa espetacularização tivemos com as duas denúncias contra o
presidente da República oferecidas pelo antigo procurador-geral da. No
momento em que o Brasil começava a sair da crise, nada obstante a
impopularidade presidencial, com baixa inflação, retomada do
crescimento, fim da recessão, juros em queda livre, reforma trabalhista,
teto para despesas públicas, abertura da exploração de petróleo,
recuperação da Petrobrás, etc., as duas mal elaboradas e rejeitadas
denúncias prejudicaram imensamente o País, que necessita de novo
inserir-se no mundo globalizado assumindo posição competitiva, depois de
ter de lá sido retirado por 13 anos de desestruturação econômica dos
governos anteriores.
Parece-me, pois, que chegou o momento de a Constituição voltar a ser
respeitada. Voltar a ser o Poder Judiciário um legislador negativo, e
não um substituto do Poder Legislativo. Perceber o Legislativo a
importância para o País das reformas sugeridas pelo Executivo. É
necessário lembrar que o presidente da República foi o que melhores
resultados obteve na aprovação de projetos, com menor custo político e
de verbas, se comparado com os presidentes anteriores. O Ministério
Público, por seu lado, não deve agir como um Poder, muito menos como
“polícia judiciária”, substituindo delegados de polícia, visto que a
Constituição lhe veda tal papel, reservado pelo artigo 144, § 4.º, da
Lei Suprema à competência exclusiva de delegados de carreira.
Que o Brasil volte a respeitar a harmonia e a independência dos Poderes é o que todos os brasileiros desejam.
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