por Eliane Cantanhêde O Estado de São Paulo
Vem aí um grande estouro da boiada com o fim anunciado do foro
privilegiado para deputados e senadores em caso de crimes comuns e
anteriores ao mandato. O Supremo se livra de cerca de 800 privilegiados,
a vida dos juízes de primeira instância vai mudar um bocado e muitos
parlamentares vão começar a refletir se vale mesmo a pena disputar a
reeleição.
Os advogados terão muito trabalho e seus honorários polpudos estão
garantidos. O primeiro cálculo é em que casos vale ou não a pena tirar
seus clientes poderosos do Supremo para enfrentar a primeira instância
nos Estados. Para alguns investigados, pode ser o paraíso. Para outros, o
inferno. Depende das relações que tenham na Justiça local e,
obviamente, o caráter e compromisso de cada juiz.
Em tese, um juiz amigão pode ajudar bastante, mas um que seja amigão do
adversário pode ser tentado a usar sua prerrogativa de autorizar quebra
de sigilos telefônicos, fiscais e bancários. E há muitas dúvidas de
ordem prática.
Antes de pedir vista, o ministro Dias Toffoli já antecipou algumas
dessas dúvidas em perguntas ao relator Luís Roberto Barroso que vão
virar uma enxurrada de embargos, petições e questionamentos ao STF. Por
exemplo: o que acontece com o deputado acusado de receber propina como
prefeito, mas que continuou recebendo na Câmara?
Hoje, há um sobe e desce de instância dependendo de qual mandato o
político tem em cada momento. Mas, apesar do adiamento do resultado
final e das dúvidas, o fato é que o Supremo deu um passo não apenas para
acabar com um de tantos privilégios e tornar a Justiça mais igual, como
também um passo de reencontro com a opinião pública.
Note-se que o STF é dividido ao meio, mas a decisão é inegavelmente
majoritária. Ao decidir antecipar o seu voto, o decano Celso de Mello
teve a evidente intenção de sedimentar uma decisão praticamente
consensual e dar uma resposta, e um alívio, para a sociedade. Foi um
sinal, um símbolo.
A decisão é comemorada de Norte a Sul por movimentos de combate à
corrupção e por cidadãos e cidadãs exaustos com a extensão e os valores
desviados do público para o privado. Entretanto, a questão não é tão
simples assim. Os princípios de igualdade são inquestionáveis, mas todos
sabemos o quanto, entre o discurso e a prática, vai uma distância
enorme. Passada a festa, vai ficar claro que acabar ou revisar o foro
não é uma panaceia para todos os males da Justiça nacional.
O que move a ira da sociedade contra o foro privilegiado é
principalmente a lentidão do Supremo, mas a Corte julgou, condenou e
mandou prender rapidamente no mensalão, enquanto o ex-governador Eduardo
Azeredo está sendo julgado até hoje em Minas, seu Estado, por eventos
de 20 anos atrás.
Já era previsto um placar com margem folgada (considerando o ministro
Ricardo Lewandowski, que está de licença) e o pedido de vista. Se houve
uma surpresa foi a força da argumentação dos vitoriosos e o isolamento
de Toffoli e de Gilmar Mendes.
Eles foram acompanhados em parte por Alexandre de Moraes, criando uma
situação curiosa: Gilmar tem relações diretas com o presidente Michel
Temer, Toffoli teve um encontro em particular com Temer às vésperas da
votação e Moraes foi ministro da Justiça do atual governo, que o indicou
para o STF.
O presidente trabalha para manter o foro privilegiado tal como está? E
com que objetivo? A resposta pode estar no Congresso, que vota
simultaneamente uma emenda à Constituição que revisa o foro não só para
parlamentares, mas para quase todas as autoridades, até mesmo juízes. E
pode fazer o contrário com ex-presidentes: hoje, eles não têm foro
privilegiado, mas passariam a ter. Já imaginaram Lula sem Sérgio Moro
nos calcanhares?
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