FABIO DE BIAZZI ESTADÃO
Apesar de conhecidos esses números há muitos anos, dessa e de outras brutais ditaduras socialistas, continuamos incompreensivelmente a conviver com defensores desses governos bárbaros na política, no jornalismo, na academia. Visitemos as redações dos maiores jornais e eles estarão lá. Visitemos as universidades públicas e os defensores ardorosos da foice e do martelo estarão lá, talvez agora travestidos de bizarros exemplares bolivarianos.
Essa visão anacrônica e engajada com as promessas e os ideais socialistas fundamentaram partidos e “movimentos sociais” de esquerda mundo afora e deveu sua longevidade também ao que Bertrand Russell chamou de falácia da aristocracia: os indivíduos que levam à frente essas ideias as julgam imaginando que farão parte da minoria privilegiada que estará no comando, com papel e condições de vida totalmente diferentes dos que aguardariam os cidadãos comuns. Embora essa visão tenha sido abandonada em quase todo o mundo civilizado, seria perigosa ingenuidade acreditar que tal perspectiva política esteja enterrada no Brasil.
Aos pais que se preocupam por seus jovens serem doutrinados pelas promessas mentirosas e pelos fantasiosos ideais socialistas – e não, como deveriam ser, devidamente apresentados às consequências e aos resultados práticos desses regimes – segue uma singela sugestão: indiquem a seus filhos a leitura do livro Arquipélago Gulag, do Prêmio Nobel de Literatura Alexander Soljenitsyn (1918-2008).
Esse corajoso físico e matemático russo foi um capitão condecorado na 2.ª Guerra que acabou preso por terem encontrado em sua correspondência pessoal críticas a Stalin e ao governo soviético. Soljenitsyn passou 11 anos aprisionado em campos de trabalhos forçados, que surgiram ainda na época de Lenin e cujo número ultrapassou uma centena, quase todos espalhados pela Sibéria. Libertado por Kruchev, durante os anos seguintes dedicou-se a registrar não só as próprias memórias, mas os relatos e experiências de outros 227 presos nos campos que compunham o Gulag. Em suas próprias palavras, o livro é “um monumento coletivo àqueles que foram torturados e assassinados”.
Segundo Soljenitsyn, a realidade mais aterradora do que ele vivenciou nos campos siberianos era que, como um câncer, os venenos do Arquipélago Gulag se espraiavam e contaminavam todas as relações sociais e humanas naqueles países. No capítulo do livro de que foi extraído o título deste artigo, ele enumera dez traços, atitudes e comportamentos da vida dos soviéticos “livres” que eram “determinados pela proximidade com o Arquipélago” ou parecidos com os comportamentos dos presos nos campos.
1) O medo constante – todos sabiam que “apenas um gesto ou palavra descuidada poderia significar uma queda sem retorno no abismo”. 2) Servidão e subjugação – ninguém podia mudar de residência ou de trabalho sem obter vistos e autorizações. 3) Dissimulação e desconfiança – esses sentimentos substituíram a “cordialidade e a hospitalidade” que sempre foram “sentimentos de defesa naturais de qualquer família ou pessoa”. 4) Ignorância universal – a necessidade de esconder dos outros sentimentos e pensamentos levou à absoluta falta de informação. “Ninguém aprendia nada com ninguém” e estavam todos “completamente nas mãos dos jornais e porta-vozes oficiais”. 5) O medo de ser delatado – mesmo num pequeno grupo de pessoas, parentes ou vizinhos, sempre existia a possibilidade de um deles ser informante do regime. Soljenitsyn estima que um a cada quatro ou cinco cidadãos soviéticos havia sido convidado a ser “dedo-duro”. 6) A traição como forma de existência – “a forma menos perigosa de sobreviver era a traição constante”, materializada principalmente pelo silêncio dos amigos e parentes dos que eram aprisionados injustamente, pois todos temiam ser acusados de dar apoio a um inimigo do regime. 7) Degradação moral – mais de 50 milhões de pessoas foram enviadas aos campos de trabalhos forçados e a maioria foi denunciada por alguém ou condenada porque alguém serviu de testemunha. Isso implicou milhões e milhões de corresponsáveis pelas prisões e mortes vivendo em meio ao “nosso povo soviético”. 8) A mentira como parte de sua natureza – por medo ou por interesse próprio, todos passaram a se acostumar com “mentiras prontas” e clichês em suas conversas, mesmo em família. Aos pais restava o trágico dilema de falar verdades aos filhos ou vê-los crescer em meio às mentiras. 9) Crueldade – “a bondade era ridicularizada, a piedade era ridicularizada, a misericórdia era ridicularizada”. Ao recusar socorrer os que eram injustamente acusados e aprisionados, todos se tornavam cruéis. 10) Psicologia de escravos – nos mais diversos lugares, guardas tinham cães “preparados para cravar os dentes em qualquer um e todos se acostumaram com essas figuras como se fossem a coisa mais natural do mundo”.
Impossível uma síntese mais chocante e assustadora do que essa de Soljenitsyn. Ela mostra o que um regime socialista comunista é capaz de fazer a um povo: destruir os corpos dos injustamente acusados e dilacerar a alma dos que restaram “livres”. Sob o socialismo comunista, como no Gulag, toda a vida é enredada pelo arame farpado. O fato de alguns adultos ainda se recusarem a enxergar isso não significa que nossas crianças não mereçam crescer conscientes.
*Engenheiro de produção, mestre e doutor pela Escola Politécnica da USP, é sócio da Baepi Partners e professor de liderança e comportamento organizacional do Insper
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