Danos do quebra-quebra - MARCELO DE PAIVA ABREU
Raras vezes o Brasil foi sacudido de forma tão impactante quanto pelas manifestações populares dos últimos dias. Não acredito, como pensam alguns, que, a exemplo do Occupy Wall Street, as manifestações do inverno brasileiro acabem por perder força e cair no esquecimento. As consequências poderão ser decisivas na definição dos resultados eleitorais do próximo ano, inclusive na eleição presidencial.
No último meio século é possível rememorar mobilizações de massas que influenciaram decisivamente a vida política do País. Em marco de 1964, as marchas da "Família com Deus pela Liberdade" contribuíram para coroar o desgaste do presidente João Goulart, logo deposto pelo golpe. Em 1968, a passeata dos cem mil no Rio e seus desdobramentos precederam o AI-5 e o endurecimento da ditadura militar. No final dos anos 1970, os movimentos sindicalistas renovadores e suas manifestações de desafio à ditadura criaram condições para a fundação do Partido dos Trabalhadores. A mobilização pelas Diretas Já, em 1983-1984, criou o clima político que viabilizou a derrotado governo nas eleições ínxííretas para presidente daRepúblicano início de 1985. O movimento dos caras-pintadas levou ao impeachment de
Fernando Collor.
O estopim da atual onda de manifestações foi a desastrosa malandragem do governo, ao pretender escamotear a aceleração inflacionária com a protelação de aumentos de tarifas de transportes coletivos. Esqueceu-se da combinação explosiva do aumento com a conclusão de obras controversas e mal geridas em um quadro de perda de popularidade do governo. Repetiu-se o cenário dos anos 1950, quando o movimento estudantil se envolvia recorrentemente em quebra-quebras em meio a denúncias sobre a "carestia de vida". Tendo as prefeituras de todo o Brasil se arrependido dos aumentos, impressiona quão difusas são as reivindicações dos manifestantes. A mistura de uma pauta difusa com a percepção de pusilanimidade do poder público pode ser desastrosa, estimulando formas de ação direta em detrimento de negociações e de processos decisórios minimamente racionais.
Quem são os manifestantes de hoje? Um grande contingente de jovens de classe média, inclusive de classe média ascendente, mobilizados pela denúncia da carência de serviços públicos como educação, saúde e transporte público, da percebida impunidade de corruptos e das deformações do sistema político brasileiro. E também, claro, bandidos que se aproveitam da situação para saquear lojas e destruir patrimônio público.
Do ponto de vista da coalizão política governamental, as manifestações são preocupantes. Superpõem-se aos desenvolvimentos negativos no cenário econômico, que combinaram inflação em aceleração, desvalorização cambial e frustração do crescimento. O governo Rousseff tentará remendar febrilmente as carências mais onerosas politicamente em situação em que os recursos já estão comprometidos com projetos de qualidade duvidosa.
Foi noticiado que Lula teria feito apelo a intelectuais orgânicos do PT, incluindo Marilena Chauí, para interpretar os protestos. Não parece caminho promissor. Na esteira da crise do mensalão, sua reação ante a debacle ética do partido foi receitar ao povo, sequioso de bom governo, reflexão sobre a polêmica Sartre-Merleau-Ponty.
Quanto à classe média, a professora é enfática. Em recente lançamento do livro Lula e Dilma, esbravejou "eu odeio a classe média", em meio a aplausos da liderança petista, apesar das reservas de Lula (ver o pedagógico clipe em http://www.youtube.com/watch?v= JJpKsmefsdY).
Os quebra-quebras envergonham quase todos os brasileiros. Mas talvez o pior quebra-quebra a que se vem assistindo seja o solapamento da boa governança macroeconômica herdada do governo FHG e dos primeiros anos do governo Lula. Vai ser duro reconstruir a reputação perdida.
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