O protesto nas ruas e os reflexos no sistema de Justiça
Começou em São Paulo, na tarde do dia 13 de junho. Estudantes,
liderados por um grupo social denominado “Movimento Passe Livre”,
protestaram contra o aumento da passagem de ônibus, que de R$ 3 foi para
R$ 3,20 na capital paulista. Houve reação policial, com balas de
borracha e bombas de efeito moral. O efeito foi multiplicador. Outros
grupos se associaram e, através de redes sociais, milhares de pessoas se
mobilizaram. Pouco a pouco, quase todas as capitais estavam envolvidas
no mais surpreendente movimento da vida política brasileira.
A surpresa vem do fato do país estar em seu melhor momento econômico.
Ninguém pode negar, independentemente de sua crença política, que o
Brasil atravessa fase de prosperidade. O acesso à moradia foi
facilitado, a oferta de empregos permanece em alta e, ao contrário da
Europa, o país avança rumo ao reconhecimento como potência emergente. O
gigante sai do berço esplêndido. ...
Pois bem, aí está o paradoxal. Qual, então, a razão de tanta revolta?
Afinal, o próprio movimento tem frentes diversas e pouco definidas.
Começou com a elevação do preço do transporte urbano, porém estendeu-se a
outros temas. Nos cartazes dos manifestantes veem-se apelos contra as
obras da Copa do Mundo, corrupção (em termos genéricos), partidos
políticos, sistemas de saúde, educação e até mesmo a ditadura, muito
embora estejamos em regime absolutamente democrático.
A diversidade não é só de temas, mas também de manifestantes. Há
estudantes idealistas, lutando com a única arma que possuem, para que
este seja um país melhor. Donas de casa, idosos, pessoas de distintas
classes sociais. E há também outros, com propósitos absolutamente
diversos, que são os que destroem o patrimônio público ou privado,
tentam invadir prédios públicos e atacam os policiais. Em que pese o
lado positivo do exercício da cidadania, há nisto tudo o risco de uma
anarquia violenta. Não há limites, racionalidade ou controle da multidão
enfurecida.
Muitos tentarão explicar o movimento, do ponto de vista econômico e
social. Na verdade, serão meras opiniões, pois ninguém sabe a resposta. É
possível, todavia, arriscar alguns palpites. A revolta não tem
fundamento econômico. Ela é contra a corrupção, a impunidade e a
deficiência dos serviços públicos essenciais, como saúde, educação e
segurança.
Fiquemos na nossa área de interesse, segurança pública e administração
da Justiça. Ninguém aguenta mais agressões gratuitas, como o fogo
colocado em uma dentista porque só tinha R$ 30. Idem a total falta de
efetividade da Justiça nos processos envolvendo crimes de corrupção ou
homicídios com veículos. Os recursos se sucedem, levando o
Estado-Judiciário à total incredibilidade.
A corrupção vem avançando no Brasil e isto é fato notório, o que, para o
artigo 334, inciso I do Código de Processo Civil, não depende de
provas. Corrupção sempre existiu em qualquer época ou civilização.
Todavia, quando ela não é reprimida, alastra-se. Mas qual o motivo dessa
chaga espalhar-se como um câncer por todo o tecido social? Em visão
realista, penso que o que leva ao aumento da corrupção é a impunidade. E
não vejo a educação como solução para este problema. Talvez até o
agrave, pois o corrupto culto aprimora seus métodos de ação, torna-os
mais camuflados.
Com relação à impunidade, em passado recente tivemos o AI-5, de triste
memória, que inibia a corrupção do agente público pelo medo. Em seu nome
foram praticadas injustiças, já que não existia direito de defesa.
Contudo, depois de 1988, partimos para o oposto. Ao necessário e
imprescindível direito de defesa não se contrapôs o direito a uma
decisão judicial rápida e eficiente. Quando liberdade e segurança
deveriam andar juntas, ocorreu o desequilíbrio. Para aquela, tudo. Para
esta, nada.
Sobre o artigo 5º da Constituição, que trata dos direitos e garantias
individuais, temos rica doutrina e jurisprudência farta. Já o artigo 144
da Carta Magna, que assegura a todos os brasileiros o direito à
segurança pública, não é conhecido nem pelos estudantes de pós-graduação
em Direito. A doutrina pátria não lhe dedica mais do que duas páginas
nos comentários à Carta Magna. A jurisprudência não registra
precedentes. Na academia não existem monografias de graduação,
dissertações de mestrado ou teses de doutorado.
Em nome do sagrado direito de defesa criaram-se tantos obstáculos à
investigação e ao julgamento, que nos crimes de corrupção a impunidade
tornou-se regra. A começar pelo entendimento adotado pelo STF, por 7
votos contra 4 (HC 87.048/MG, relator Eros Grau, julgado 5 em fevereiro
de 2009), no sentido de que a execução penal só pode dar-se após o
trânsito em julgado da sentença definitiva, o que equivale a dizer oito,
dez ou 12 anos de tramitação de um processo criminal.
Por causa desta orientação do STF, adotada depois pelos demais
Tribunais, um homicida confesso é condenado a muitos anos de prisão pelo
Tribunal do Júri, sai livre pela porta da frente, deixando a família da
vítima atônita. E certamente ansiosa por participar de muitas passeatas
e, em casos extremos, de destruir o que vê na sua frente. A este
homicida se dará o direito de recorrer ao TJ, STJ e STF, sempre livre,
desde que prove ter residência fixa (basta uma conta de luz) e emprego
(basta a declaração de um amigo).
Esta é a situação mais grave, mas não é a única. Ao infrator também se
busca assegurar outras regalias, sempre com base na Constituição: a)
calar-se diante da polícia ou do juiz; b) não recolher fiança se não
dispuser de meios para fazê-lo; c) estar presente nas audiências, mesmo
que a testemunha se limite a elogiar seus antecedentes e o deslocamento
importe em enorme gastos públicos; d) condenação em pena de multa é um
quase nada jurídico, pois, se o condenado não pagar, vira cobrança por
execução fiscal ; e) inexistência de presídios, o que leva os condenados
a crimes graves a cumprir a pena em regime semiaberto, via de regra sem
ter quem os vigie; f) vedação por Súmula Vinculante do STF ao uso de
algemas, dando aos criminosos a oportunidade de evadir-se ou agredir
alguém e, ao policial, o risco de ver-se processado por abuso de
autoridade; g) redução das penas por isso ou por aquilo, de modo que uma
grave condenação a 12 anos pode significar o cumprimento de dois
apenas, passando o condenado ao regime semiaberto.
A sociedade não entende estas nuances processuais. O raciocínio da
população é mais simples, direto. Vê em situações como esta, impunidade.
A soma de tais práticas, legislativas ou jurisprudenciais, levam os
julgamentos na esfera penal a uma ineficiência ímpar. Estimula o
infrator ao crime violento ou ao sofisticado (crimes de colarinho
branco), porque em ambos, com uma orientação jurídica mediana, pode
safar-se das penas da lei ou, pelo menos, da prisão.
O melhor exemplo disto é o caso conhecido por “mensalão”. Não estou
analisando o mérito. Seria uma irresponsabilidade, pois não li o
processo. Portanto, respeito todos os pontos de vista exteriorizados nos
votos dos ministros do STF, vencedores ou vencidos. Interessa-me apenas
registrar que, julgada a Ação Penal no fim do ano passado, pela única e
última instância, não foi e não será tão cedo julgada em definitivo.
Não se executa.
Em suma, o protesto nas ruas como o que estamos assistindo é um
fenômeno novo na história do Brasil. É preciso avaliá-lo com calma. Mas
algo fica bem claro. O povo está cansado da ineficiência do Poder
Público, da corrupção e da impunidade. Dá o seu aviso. Amanhã a invasão
de um prédio público pode consumar-se e alguns pagarem com a própria
vida. Na esfera penal, está na hora de repensar-se a legislação e a
jurisprudência extremamente liberais, muitas vezes fundadas na doutrina
de juristas estrangeiros que nada têm a ver com a realidade do
hemisfério sul. Antes que seja tarde.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª
Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da
PUC-PR.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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