Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O latim e o baile funk



Confesso nada entender a respeito de lingüística. Pergunto-me se há alguma utilidade efetiva para essa "ciência" esquisita (talvez a finalidade maior seja a de empregar lingüistas). Quando eu ouço o lingüista falar, lembro imediatamente da bizarra figura do antropólogo, cujo ganha-pão, segundo o jornalista Janer Cristaldo, é o índio. Ambos são profissionais que falam jargões quase incompreensíveis e, por vezes, absurdos. Se o lingüista, muitas vezes, pode ser o relativista da língua, o antropólogo é o relativista da cultura. O primeiro parece negar qualquer padrão aceitável do idioma. Já o segundo afirma que nenhuma cultura é superior a outra: todas se equivalem.

Desse modo, para o antropólogo, os nossos juízos, valores e idéias são apenas reflexos de uma cultura em particular. É necessário indagar como alguns lingüistas estudam e identificam o idioma, se não aceitam padrões claros que definam a sua existência. Ou mesmo o antropólogo, que deve se achar acima de todas as culturas, para afirmar que a sua antropologia sirva para analisar todas elas. Não falo sobre todos os lingüistas e todos os antropólogos, mas tão somente sobre os lingüistas e antropólogos mais comuns. Há exceções notáveis. Contudo, a regra é de assustar.
O famigerado "preconceito lingüístico" de Marcos Bagno é a moda acadêmica da atualidade incultural brasileira. Para ensinar o português, não é preciso mais ensinar a gramática. Qualquer fala ou qualquer escrita, por mais insuficiente, confusa ou ininteligível que possa ser, deve ser aceita como forma válida de comunicação. (Mesmo que ninguém mais entenda a norma culta ou consiga ler, entender e falar em vernáculo correto.) A gramática, a literatura e a história da língua são apenas meios opressivos de classe, de ideologia e de condição social, prontos a discriminar os pobres burrinhos. Corrigi-los é um crime de lesa-pátria e despotismo abomináveis! O objetivo maior é fomentar a rebelião da classe iletrada contra o homem instruído e suas engrenagens de exploração (a literatura e a gramática), tal como o proletariado deve combater o burguês e a sociedade capitalista! Em suma, Camões e Machado de Assis deveriam ser fuzilados em nome da revolução! Ou no mínimo, queimados na fogueira. É a luta de classes no universo da língua, dos oprimidos analfabetos contra os opressores alfabetizados. Analfabetos de todo o mundo, uni-vos!
Certa vez contei um fato à minha professora de história. Um judeu americano, filho de ucranianos, chamado Norman Podhoretz, era um garoto pobre da Nova York da primeira metade do século XX. Ele falava um inglês carregado de sotaque iídiche. Sempre que chegava à escola, falava puxando aqueles terríveis erres germânicos. A professora de inglês o colocou numas aulas de "correção de sotaque". E Podhoretz pôde falar inglês como um norte-americano, pronunciando corretamente as palavras. A professora de história me olhou com um ar de horror. Discípula de Paulo Freire, só faltou acreditar que era a "pedagogia do oprimido" aplicada ao judeuzinho. Achou aquilo um crime. E eu retruquei: "Não, professora, ele agradeceu. Se não falasse o inglês direito, ele jamais saberia se entender com sua vizinhança irlandesa ou italiana e ficaria preso no seu universo de bairro judeu". Norman Podhoretz, essa "vítima" da sociedade americana capitalista e malvada, tornou-se um intelectual neoconservador, jornalista e escritor respeitado.
Não falo, neste caso, sobre os judeus do Leste Europeu ou da Rússia, mas sim de brasileiros, cujo português é a língua materna. No entanto, a educação pública brasileira o transforma numa língua estrangeira para os brasileiros. Estes não conseguem identificar o idioma de suas raízes culturais e literárias. Ou melhor, falam um vernáculo de baixo nível, achando que personificam o que há de melhor no idioma. Pouca importa, nesse caso, a famosa frase de Pessoa: "Minha pátria é minha língua". O idioma perde sua unidade para se tornar uma torre de Babel.
Escutei a pérola de um lingüista. Como não há padrões que definam a nossa língua, e como existe uma dinâmica do idioma, logo, a gramática, a norma padrão e o que denominamos de "purismo" do idioma são formas elitistas de engessá-la. Ou seja, para este sujeito, não existia a distinção qualitativa entre a fala e escrita de um literato, um erudito ou uma pessoa que domine a mera expressão formal da língua e as gírias do baile funk. Para citar um exemplo, ele lembrou do latim (sim, do latim) para justificar essa mudanças.
Se as origens do português derivam do vulgar de latim, por que impedir que o linguajar baixo do povo não possa criar novas formas de linguagem, transformando o velho português num novo latim? Fiquei perplexo com tal teoria. Alguém poderia equiparar a língua de Cícero, de Virgílio, de Títo Lívio, de Gaio, de Sêneca, de Juvenal, com as musiquinhas estúpidas do baile funk ou do pagode? Ou as falas pobres das novelas da Rede Globo? O latim medieval e o trivium poderiam ser equiparados com as teorias lingüísticas xucras de Marcos Bagno?
O delírio interpretativo que cheguei a escutar me deixou pensativo. Se alguém pode extrair da língua latina alguma origem na fala ruim da patuléia, realmente poderíamos receitar o hospício para este indivíduo. Porém, este tipo está no Brasil. E é professor de lingüística e de português.
A teoria lingüística dos discípulos de Marcos Bagno ensinada em faculdades e escolas, na prática, não consegue construir uma nova língua. Ela prejudica a língua existente. Deseduca o povo e pode arruinar qualquer fundamento de norma escrita e falada. Quando o português começou a existir, com toda a sua vulgaridade, nunca abandonou suas raízes gramaticais e semânticas gregas e latinas. Não abandonou nem mesmo o alfabeto latino. Felizmente não havia Marcos Bagno na Idade Média!
Certos lingüistas querem apagar o passado do nosso idioma na memória do povo, tal como Pol Pot tentou riscar do mapa a história do Camboja. Criam uma geração de analfabetos funcionais, presos aos seus estreitos nichos lingüísticos, incapazes que são de compreenderem a sua língua na sua maior expressividade, complexidade e riqueza. Quem se prende à linguagem do baile funk ou da novela da Globo nunca alcançará Camões ou Machado de Assis. Não terá capacidade para isso. Será sempre o homenzinho vulgar, com sua expressão primitiva, ilógica. Na pior das hipóteses, nunca saíra da miséria cultural e social. Seu nível de português não serve para o mercado de trabalho, para as exigências profissionais mais especializadas ou para a universidade. A não ser, claro, que seja um mau profissional ou que estude numa faculdade de fundo de garagem.
O produto claro do ensino de lingüística no Brasil é óbvio demais: 38% de alunos universitários são analfabetos funcionais. Indivíduos que não dominam as construções gramaticais elementares do idioma. Não escrevem de forma coerente. Não conseguem ler livros. Não conseguem se expressar com objetividade ou clareza. O estrago todo é muito feio. O Brasil está abandonando a última flor de Lácio inculta e bela, para a linguagem da Idade da Pedra.
Eu não entendo nada de lingüística. Mas entendo razoavelmente a língua portuguesa, ainda que cometa alguns deslizes. Do jeito que os lingüistas estão falando tanta baboseira, é melhor não aprender nada sobre o assunto. Senão, desaprendo o português.
 

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