por José Nêumanne
Não é de hoje que o Estado brasileiro atua exclusivamente para
satisfazer ânsias de riqueza de seus mandatários e funcionários, a ponto
de o verbo servir haver perdido todo o sentido ativo, passando a ter
apenas o significado passivo para a casta privilegiada e a burocracia
que se presta a trabalhar só para ela. Notícias recentes trazem a
público indícios claros de que os Poderes da República, na ânsia de
proteger seus privilégios corporativos, tomam o mando, em teoria do
povo, para exercê-lo em função de uma classe social que se reproduz por
via hereditária, como no ancien régime,
por nomeação do chefe do Estado, por concurso público ou até pelo voto.
Esta ruptura do mais pétreo dos preceitos constitucionais – aquele
segundo o qual todo o poder deve emanar do povo e em seu nome ser
exercido – teve seu apanágio retórico no julgamento de habeas corpus
impetrado por um condenado por crime comum. Nele o advogado de defesa,
político profissional, Roberto Battochio elegeu como símbolo da justiça
que pedia para seu representado, o ex-operário Luiz Lula, o discurso do
nobre advogado do monarca Luís XVI, Guillaume-Chrétien de Lamoignon de
Malesherbes (atenção para a duplicação da nobiliárquica preposição de), contra o “punitivismo” jacobino na Revolução Francesa.
Agora é muito provável que estejamos em pleno paroxismo dessa lenta e
inexorável tomada de poder numa democracia que se perde pela
aristocracia de estamento nesta República (de res publica,
no latim, coisa pública) assaltada pelos interesses privados de uma
classe cínica e insaciável, que não tem espírito cívico nem dá a mínima
para a moral e os bons costumes. O presidente mais impopular da
História, Michel Temer, protagonizou recentemente um dos episódios mais
representativos, mas não o único, nesse sentido. Para resolver o impasse
criado pela falta de rumo, autoridade e competência na gestão – o
movimento organizado para defender os interesses exclusivos de
caminhoneiros e empresas transportadoras –, o chefe do governo atropelou
o bom senso e a lei, cedendo a tudo o que exigiam os amotinados. Com
isso interrompeu a política de preços adotada para recuperar as finanças
da Petrobrás, quase falida pelo furto de seus ativos nos desgovernos de
seus ex-aliados Lula e Dilma, restabelecendo o tabelamento de seu
correligionário José Sarney para o diesel e para o frete. Com a “bolsa
caminhoneiro”, como definiu o Estado em
primeira página na edição de domingo 17 de junho, o chefe do Executivo
adotou uma medida ilegal, pois, conforme advertiu o Cade, em manchete na
segunda-feira 18, violou o princípio da livre concorrência, marco
basilar da economia de mercado, vigente no País. Ou não é mais?
O economista Edmar Bacha, em entrevista a este blog na semana passada,
lembrou que Temer teve o juízo de montar “uma equipe econômica da melhor
qualidade (que) opera com relativa autonomia, dentro dos estreitos
limites da atual conjuntura”. Isso só “não funcionou porque o presidente
perdeu todo o seu capital político com a revelação de suas tratativas
pouco republicanas na calada na noite com o empresário Joesley Batista. A
partir daí o governo teve de se dedicar a barrar o impeachment, incapaz
de desenvolver uma agenda econômica positiva”, disse Bacha.
O episódio lembrado pelo criador do termo “Belíndia” para definir o
Brasil como parte Bélgica e parte Índia é um dos marcos de fundação
dessa aristocracia de cartéis. Estes vão do pacto entre políticos
governistas e da oposição, grandes empresários, principalmente
empreiteiros, e burocratas de estatais, em particular a Petrobras, e
autarquias, até o compromisso ilegal do presidente para interromper a
recente pane seca e o consequente desabastecimento de derivados de
petróleo e gêneros alimentícios. Um dos lemas dessa situação surreal em
que o quinteto Temer, Padilha, Moreira, Marun e Etchegoyen meteu o País é
a frase com que o primeiro recebeu o meliante do abate Joesley Batista
na garagem do Jaburu (mais adequado seria chamar o palácio de Guabiru)
na calada da noite: “Tem que manter isso, viu?” Apesar da desesperada
tentativa dos asseclas palacianos de desqualificarem a gravação do
palpite pra lá de infeliz, ela se perdeu por lembrar outro lema, que
pode valer para essa classe de roedores do erário, da lavra do
presidente do MDB temerário, Romero Jucá, ao correligionário que
presidiu a BR Distribuidora (de derivados e propinas), Sérgio Machado:
“Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria”.
A sangria ainda não foi estancada, apesar do esforço que tem sido feito
pelos chefões políticos. Mas as eleições gerais de outubro que vem não
são nada promissoras em relação à atuação do combate à corrupção na
polícia e na Justiça. Nenhum presidenciável deu até agora sinal de que
esteja fora desse pacto. Um deles, Geraldo Alckmin, cujo PSDB foi
derrotado por Dilma e Temer em 2014 e hoje é parceiro do governo, teve o
descaramento de dizer que este “padece de uma questão de legitimidade”,
como se o chanceler Aloysio Nunes Ferreira não fosse tucano, como ele
é.
As duas frases sobre as quais se sustenta a oligarquia dos cartéis nos
levam, destarte, a introduzir nessa constatação da total deturpação do
Estado de Direito em estágio de defeito o Poder Legislativo. Jucá,
pernambucano de Roraima, onde faz praça e troça, é um bom exemplo da
transformação do governo do povo em desgoverno dos polvos. Desde que o
“caranguejo” Eduardo Cunha se assenhoreou do comando da produção de
leis, o Congresso Nacional passou a servir apenas a “manter o que está
aí” e, para isso, a procurar fórmulas legais para “estancar essa
sangria”, aplicando um garrote vil contra a ação moralizadora de
agentes, procuradores e juízes federais de primeira instância.
Essa tarefa mesquinha e traiçoeira contra o povo que deputados e
senadores fingem representar começou a ser cumprida com a “lei da
bengala” que mantém os compadritos(apud Jorge
Luís Borges) nos tribunais superiores de Contas, Justiça e Supremo. Com
a vigilância sobre propinas e caixa 2 na contabilidade das campanhas
eleitorais, para garantir suas vagas e as de parentes e cumpinchas, os
legisladores criaram o Fundo Eleitoral, que, segundo a Folha de S.Paulo, usando dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), representa 86,5% das receitas de seus partidos.
Duas notícias, publicadas lado a lado na primeira página do Estado de
segunda-feira 18, complementam a anterior. Uma dá conta de que a
eleição para o Senado este ano terá número recorde de candidatos – 70% –
em busca de reeleição. Em entrevista a Fausto Macedo e Ricardo
Galhardo, o ex-diretor da Polícia Federal Leandro Daiello informou que
“há material para mais cinco anos de operações”. A reeleição de qualquer
político que possa estar nesse “material” é uma ameaça à continuidade
do combate à corrupção, sem o qual não há como o Brasil deixar de ser
este trem descarrilado, cujo farol é a luz que se poderá ver saindo do
túnel das urnas.
O pior de tudo é que a esperança que a sociedade passou a ter na ação
das operações a que Daiello se referiu está nas mãos de quem mais as põe
em risco. Os seguidores de Malesherbes, representados pelo quinteto
Gilmar, Lewandowski, Toffoli e a dupla Mello, continuam a atuar como
garantes não da igualdade dos cidadãos perante a lei, assegurada pela
Constituição vigente, mas, sim, dos caprichos e “dodóis” dos clientes
abonados das bancas que abrigam mulher, genro, amigos e antigos
parceiros de convescotes e salamaleques.
Vitimados pelo desemprego, pela violência e por saúde e educação de
péssima qualidade, os pobres, que nem sonham poder um dia exigir seus
direitos no fechadíssimo clube da impunidade dos que são mais iguais
perante a lei, pagam a conta do desgoverno do Executivo, da safadeza do
Legislativo e do cômodo uso da definição de Corte para seu colegiado com
os mesmos frufrus e minuetos das monarquias absolutistas. A proibição
da condução coercitiva de delinquentes de colarinho-branco e a tentativa
de garantir a honra de políticos desonrados proibindo fake news são
exemplos recentes, mas não os únicos, de como os ministros de tribunais
superiores participam, sem pudor, do golpe dos “aristo-ratos” que se
locupletam como dantes nos cartéis de Abrantes.
- Jornalista, poeta e escritor
extraídaderota2014blogspot
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