por Roberto DaMatta O Globo
1. Um dos mistérios da vida coletiva é justamente o sentido da vida
coletiva. Movidos a individualismo, ficamos estupefatos diante do
significado do coletivo que, a rigor, não deveria ter capacidade de
criar as circunstâncias não previstas que nascem do previsto e do
esperado. Do café mal feito ao gol do adversário; da vitória mundial no
futebol da chamada sub-raça, forçada a redefinir-se; da investigação
policial que — eis o inesperado do inesperado — leva à prisão de quem se
pensava acima da lei e — eis outra ironia — torna republicano um
sistema avesso à igualdade.
2. O coletivo não é uma soma de indivíduos. Ele tem sua realidade e os
seus códigos — a língua, a geografia e a história. Suas constituições e
palcos nos quais entramos sem sermos chamados. Tal conjunto se faz por
determinações coletivas. Concordo com Lévi-Strauss quando ele
freudianamente põe em dúvida a consciência individual. E com Louis
Dumont quando ele denuncia o primado do individuo (e da parte) como um
valor instituído pela modernidade.
3. O esporte é uma instituição social delimitada. Ao contrário da rotina
que não tem fim, ele tem tempo, espaço, gestos, objetos, vestimentas e
regras próprias. No futebol da Copa que me embriaga, tirando os
goleiros, nenhum jogador pode tocar a bola com a mão. Mas no mundo
público nacional, dentro do qual o futebol acontece, os poderosos podem
meter a mão nos dinheiros públicos e é somente neste século vinte e um
que se cogita em puni-los com as reações que todos conhecemos. De um
lado, há os que querem uma igualdade de todos como no futebol; do outro,
há os que querem mudar as regras ainda que isso custe o fim do jogo.
4. Há um elo óbvio entre esporte e democracia.
5. No futebol há um dinamismo contrário às rotinas. Mas as regras
ancoram tudo. Numa sociedade constituída pelo “jeitinho” para certas
situações e pessoas, conforme revelou minha colega e querida amiga Lívia
Barbosa, começamos a ter uma clareza futebolística. Sem limites não há
chance de viver democraticamente. A distribuição equitativa de justiça e
bem-estar exige talento e, acima de tudo, respeito às leis.
6. No esporte não cabe populismo, embora os populistas, fascistas e seus
simpatizantes possam tirar proveito dos seus resultados. O humano não é
puro.
7. Imagine um jogo de futebol no qual os jogadores ricos, famosos e de talento pudessem seguir seus desejos.
8. A famosa “transparência” é simplesmente a coerência entre pessoa,
papel e norma coletiva. Quando isso não ocorre temos malandragem. E o
malandro, conforme mostrei em “Carnavais, malandros e heróis”, é
personificado por Pedro Malasartes — o rei do mal-entendido que
desmantela o planificado. Mestre da ironia, Malasartes é uma saída para o
trabalho estigmatizado pela escravidão e por um sistema dominado por um
Estado opressor e juridicamente onipotente.
9. Tenho reiterado que a experiência inconsciente da igualdade é básica
na popularidade desse esporte no Brasil e no mundo. A integração pela
igualdade permitiu juntar pretos e brancos, ricos e pobres, analfabetos e
letrados. Foi o futebol que permitiu redefinir nossa autoestima. Hoje,
quando punimos os pênaltis cometidos pelos poderosos, ele ajuda a
desmistificar o nosso enraizado populismo.
10. Condenar um goleiro que “engole frangos” — um “frangueiro” — como se
dizia antigamente, é uma coisa. Outra coisa é saber que o “frango” foi
proposital num jogo que envolve o país e demanda honestidade e altruísmo
— serviço para a coletividade e não para si próprio. O esporte, como o
teatro, o romance (e os mitos) não mente porque eles são ficcionais. Num
filme ou romance não há fake news, porque tudo é fake. Nessa esfera da
vida, há uma desigualdade de raiz entre o produtor e o espectador.
11. Situado entre ficção e a realidade, o esporte é, para lembrar Victor
Turner, um “liminoide"— um espaço entre a realidade inexorável do
trabalho e o entretenimento que permite com ela lidar.
12. A crise brasileira tem tudo a ver com luta para aplicar no campo
político essa honradez às regras que legitima e dignifica o futebol.
PS: Atordoado pelo futebol, eu digo. Não adianta reclamar. Na vida, como
no jogo, temos que sobreviver a todas as falhas: as nossas, as que
fazem parte da partida e as dos juízes.
Roberto DaMatta é antropólogo
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