por Roberto DaMatta O Globo
Não seria possível arrolar as vezes que o Brasil foi mencionado por cronistas, missionários, viajantes, historiadores, escritores e curiosos. Quando pesquisamos os viajantes estrangeiros que falaram do Brasil, logo descobrimos como eles foram cegos ou míopes em relação a certos assuntos, ao mesmo tempo que, ironicamente, foram nítidos e certeiros relativamente a outros. Nós vemos o que os que nos visitaram não viram, e eles viram o que nós não queríamos ou não conseguíamos ver.
Todo antropólogo cultural sabe que ninguém enxerga tudo. Como dizia um dos expoentes da disciplina, E. E. Evans-Pritchard: “Na ciência, como na vida, só se acha o que se procura”. Foi, aliás, com essa advertência que eu abri o livro “Relativizando”, no qual apresento uma visão embrionária da antropologia, destinada a estudantes e leigos. Pensando nessa equação entre o achar e o procurar, neste mesmo livro eu assinalei que cada antropólogo tem, inevitavelmente, a tribo que merece.
A questão, porém, é quando se acha o que não se procura. Como a assombrosa prevenção contra os “índios” testemunhada por mim em 1959-60, confirmando o preconceito de não ter preconceito, denunciado por Florestan Fernandes. Uma falsa inocência tão maligna quanto o refrão “tudo foi feito dentro da lei”...
Consciente dessas descontinuidades de olhares, eu imagino o que os historiadores do futuro dirão do Brasil de hoje. Certamente, o espanto não vai estar no que foi superado, mas nos costumes que julgávamos suplantados ou extintos, mas que insistem em permanecer vivos até hoje.
Um deles é o pedir aos outros que façam alguma coisa para nós. “Será que você pegava o óculos do vovô?” é uma demanda situada entre o pedido de favor (opcional, mas sujeito ao famoso “você é imprestável”) e a ordem (que não deixa escolha) muito comum aqui em casa.
Tal transferência de serviço para um outro na forma de um favor foi notada pelos que nos visitaram no século XIX. Sobretudo pelos visitantes cujos “lugares de fala” eram sistemas mais igualitários e individualistas que agora estavam enfurnados numa sociedade relacional, aristocrática de molde branco europeu mas sustentada por uma imensa escravaria negro-africana.
Vindos de sociedades inventoras de expressões como “leave me alone” (deixe-me só), “do it yourself” e do “take good care of yourself” (faça você mesmo, cuide bem de você mesmo) — os reflexivos salientando um estilo de vida individualista —, eles se espantaram com um estilo de vida onde havia intermediários para falar com Deus, com o rei, com os amigos e com os criados. Foi o surpreendente Borges quem chamou minha atenção para esses — “get yourself a wife” (arranje para você mesmo uma esposa), impraticáveis para quem sempre teve um escravo, um criado, ou uma boa mãe ou esposa para “tomar conta” e “cuidar” de quem foi treinado para depender e a ter dependentes. Traço que é um dado inconsciente da própria natureza da vida social entre nós. “Se titio virar ministro, ele emprega toda a nossa família!”, eis — com as variantes de praxe — o axioma da cultura nacional.
Esse “tomar conta” é enorme: ele vai do oferecer e do prestar favor e cobre igualmente o servir o nosso prato, arrumar a nossa cama, nos dar remédio na doença e nos fazer companhia em viagens ou quando estamos solitários. Serve também para nos controlar ou “vigiar”.
Como não aprendemos a dizer não a nós mesmos, esses irmãos siameses servem de limites ou de cúmplices. O resultado é o extraordinário conjunto de crimes em quadrilha e partidários, realizados no modo relacional, que hoje ameaçam o funcionamento de uma democracia igualitária fundada no cidadão individual, e não na companheirada partidária ou corporativa.
O fato é que, no Brasil, o isolamento é visto como um castigo. Quando alguém trai lealdades, ele é posto “no gelo” e suspenso da rede social. “Eu não falo mais com ele” revela não apenas incompatibilidades, mas desdém, desprezo e abandono — essas mortes em vida. Por outro lado, a dificuldade de separar pessoas carregadas de lealdades com outras pessoas de instituições e normas é o resultado de um sistema forjado por dependências pessoais. Nunca somos apenas um, e no mundo político e religioso isso ficou bem claro para certos visitantes, sobretudo os que — como foi o caso de Thomas Ewbank — fizeram uma verdadeira etnografia do Rio de Janeiro dos 1850. Suas observações sobre as múltiplas manifestações da hierarquia e da importância das relações na vida cotidiana são numerosas e elucidativas.
Ewbank observou com método e por assunto, cobrindo um vasto campo da vida social brasileira num mesmo momento — vale notar — em que Manuel Antônio de Almeida publicava em folhetins o seu clássico “Memórias de um sargento de milícias”. Num caso, uma ficção localizada no passado; no outro, uma etnografia falando do presente. Em Almeida, dramas; em Ewbank, análise de uma realidade que o tempo apagou. Em “Memórias”, uma dupla ética; em Ewbank, a percepção aguda da hierarquia e da escravidão. Ambos mostrando como se aprende com o que chamamos Brasil.
Roberto DaMatta é antropólogo
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