Jornalista Andrade Junior

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

A bela da tarde, aos 74 -

DEMÉTRIO MAGNOLI O Globo

Francesas dizem que mulheres não precisam de fundamentalismo. Meio século, duas vezes. Em maio de 1967, estreou em Paris o filme “Belle de Jour”, de Luis Buñuel, a história da burguesa frígida Séverine que consumia suas tardes trabalhando num bordel. Em janeiro de 1968, emergiu em Nanterre, Paris, a figura de Daniel Cohn-Bendit, indagando ironicamente se um relatório oficial sobre a educação francesa abordava o tema da vida sexual dos estudantes universitários. Hoje, finalmente, cem mulheres disseram “basta!” e denunciaram as neofeministas por almejarem censurar “Belle de Jour” e cancelar a revolução sexual dos anos 60. Apropriadamente, as cem que assinam a carta aberta são francesas — e, melhor que tudo, Séverine (digo, Catherine Deneuve) é a mais conhecida entre as signatárias.

Séverine — linda, distante, gelada — recusava ser tocada por Pierre, seu marido suave e respeitoso. O ponto de fuga de sua jaula asséptica era o bordel ou as violências de um Pierre imaginário, convertido em fidalgo depravado. As saídas por baixo (pelo mundo da sarjeta), e por cima (pelo desaparecido mundo amoral da aristocracia), a conduziam ao desejo, ao gozo e à liberdade. No fim, descobrimos que as tardes da bela da tarde talvez não fossem mais que sonhos. E daí, se o gozo era real?

Deneuve assina a carta aberta para proteger o direito de Séverine sonhar. As neofeministas não têm nenhum problema com a tradição patriarcal ou o machismo. Elas querem, de fato, anular o desejo. A mensagem das cem francesas é que as mulheres não precisam de códigos fundamentalistas de conduta coletiva, da conspícua proteção do Estado, do leito hospitalar reservado às vítimas. Elas estão dizendo que são adultas e sabem cuidar de suas relações pessoais. Que, nesse âmbito, tudo que não é crime pertence à esfera privada. Que a sedução e o galanteio não são crimes. Viva Séverine!

Nos feriados, os prontos-socorros se enchem de mulheres pobres espancadas por maridos bêbados. Nas penitenciárias femininas, as detentas são regularmente abandonadas por seus familiares, que jamais as visitam. E, contudo, o movimento #MeToo, das jihadistas do feminismo pós-moderno, consagra seu tempo a nomear e difamar homens que, anos ou décadas atrás, ousaram pousar a mão no joelho de uma mulher avessa ao seu jogo de sedução. As cem francesas, indignadas com a campanha inquisitorial, provam que o espírito humano vive e resiste. A turba neofeminista não esperava por essa. Agora, as fabricantes do chavão iracundo terão que confrontar o argumento denso, o peso da crítica precisa.

Puritanas — eis a hashtag que as cem francesas colaram às feministas de araque que não aceitam as implicações da revolução sexual. O Cohn-Bendit de janeiro de 1968 ainda não era o “Daniel Le Rouge” do maio das barricadas, mas antecipava as desconcertantes pichações que cobririam os muros do Quartier Latin. Ele queria, na reunião com o representante do Ministério da Educação, o fim da rígida separação entre dormitórios masculinos e femininos nos campus universitários. A revolução sexual foi, antes de tudo, um movimento pela igualdade de direitos entre cidadãos adultos. Sua premissa implícita era que as mulheres não são o “sexo frágil”. Daí decorre que as mulheres assumem as responsabilidades que acompanham a liberdade. As novas puritanas histéricas obrigaram as cem francesas a sair em defesa desse valioso conceito anunciado há meio século.

Deneuve tinha 23 anos quando interpretou Séverine. Imagino o sólido tédio com que, aos 74, leu e ouviu as sentenças ressentidas, rancorosas, odientas, das puritanas disfarçadas de feministas. Puritanas incultas — eis a hashtag completa que a carta aberta associa às militantes da repulsa ao sexo. Sob a insuportável gritaria delas, um nu clássico foi removido do metrô de Londres. As artes, o cinema, os livros e as relações interpessoais cotidianas são os alvos da nova inquisição, que condena sem processo por meio de campanhas difamatórias nas redes sociais. As cem francesas estão nos alertando para o valor da liberdade individual e para o significado das palavras tolerância e diversidade. Elas temem, com razão, o advento de um mundo congelado, paralisado pelo estrito código normativo das Séverines que abdicaram de sonhar.

A geometria política do conflito nada tem de aleatório. O neopuritanismo descontrolado espraia-se, previsivelmente, a partir dos EUA. Na ponta oposta, a carta da resistência emerge na França — o país que, sem escândalo, assistiu ao enterro de um presidente ao qual compareceram tanto a viúva oficial quanto a informal, que era a amante. A força da carta encontra-se não só na sua qualidade intelectual intrínseca, mas no precedente que estabelece. Se as cem francesas insurgem-se contra as ferozes militantes do obscurantismo, por que não eu? Agora, as mulheres comuns já podem dizer, alto e claro, que rejeitam o figurino redutor de vítimas eternas.

Deneuve não é mais autora do que as outras 99 signatárias. Mas é justo que apareça como ícone da resistência: ser Séverine tem consequências.










































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