CARLOS ANDREAZZA O Globo
O porvir do ex-presidente esclarecerá se ele é ou não um poderoso; se é um dos intocáveis em função dos quais, fulanizadas, as leis se aparam; se é ou não, retórica popular à parte, um representante das elites contra as quais porção resistente de seus eleitores sempre votou. E aí? Tudo o mais constante, uma vez cumpridos os ritos recursais e de acordo com o entendimento corrente do Supremo Tribunal Federal: Lula será preso. Isso se as regras de hoje valerem amanhã. Alguém, entretanto, apostaria nisso? Com firmeza, alguém? Embora só agora o jornalismo tenha lançado a devida atenção ao movimento, faz meses — sempre com o destino do ex-presidente no radar — que o STF testa, em suas turmas, derrubar a jurisprudência que autoriza que um réu, uma vez condenado em segunda instância, possa ser preso.
A preparação do terreno foi — é — primorosa: depois de tatear a cancha, medindo a reação da sociedade frente à intenção, o tribunal de Cármen Lúcia ora simula uma dança de cadeiras, uma troca de convicções, Gilmar para um lado, Rosa Weber para outro, tudo para que, afinal, aquele que não havia participado da deliberação anterior, Alexandre de Moraes, pronunciese pela flexibilização da cousa, talvez de modo a subir um grau na exigência e condicionar — para que a prisão seja possível — a condenação em um segundo órgão colegiado; no caso de Lula, o STJ. Uma lambada para que escape da cadeia.
Alguém duvida? Sobretudo: alguém duvida de que juízes de nossa corte máxima se orientem não em relação a fatos, mas a nomes? Há mais de ano escrevo que a matriz da insegurança jurídica galopante hoje no Brasil é o Supremo, fonte da instabilidade sobre a qual Lula se reinventa a ponto mesmo de raptar adversários para seu discurso. Ou haverá outra maneira de ler as declarações de autoridades — Temer, Alckmin, Doria, Maia, Meirelles etc. — segundo as quais, para a pacificação democrática do país, melhor seria que o ex-presidente disputasse a eleição e fosse derrotado nas urnas?
Isso — essa barbaridade, essa ignorância política, esse desrespeito à ordem institucional, deturpação que é o próprio sonho do lulismo — significa passar a mão na bunda da ideia de Justiça e transformar o que é um processo judicial em disputa eleitoral, como se o julgamento fosse exercício de exceção, como se o juiz fosse um oponente de Lula, o perseguido.
Estou errado? Não é essa a estratégia esquerdista, bovinamente chancelada por seus adversários? Ou será a universalização desse discurso pela classe política puro medo e método? Já defendi a tese de que políticos querem o ex-presidente candidato porque isso traduziria o absoluto triunfo da impunidade, a Lava-Jato tombada ante o establishment: se Lula, mesmo condenado em segunda instância, vencer tudo o que há contra si e puder (alguém descarta a possibilidade?) concorrer em outubro, o que significará haver fulminado a regra por meio da qual deveria ser preso e, em efeito dominó, a Lei da Ficha Limpa, que o tornaria inelegível, ninguém mais cairá. Mas esse é o cálculo dos políticos.
Como, porém, lidar com as palavras, em entrevistas, de Marco Aurélio Mello, ilha suprema para quem a prisão de Lula — como se não houvesse a jurisprudência do STF, tribunal que integra — seria precipitada e traria riscos de caos social? O que é isso, senão explícita manifestação de que a lei se curva a pressões, recua ante o mito da convulsão popular e se molda à agenda política de apaniguados? O que é isso, senão prudência seletiva? O que é isso, senão um habeas corpus preventivo apregoado nas páginas dos jornais? E veja que concordo com o ministro no conceito: prisão sem trânsito em julgado é inconstitucional. Muito pior do que isso, contudo, é que uma corte constitucional ajuste entendimento a depender do réu.
Lula jamais lidou com as ações que há contra si como matéria jurídica — ou teria trocado de advogado, né? Para ele, a condenação em segunda instância nunca foi dúvida. Tampouco lhe importava o placar do julgamento, porque os embargos que lhe interessam já estão interpostos faz tempo (com adesão luxuosa de adversários parvos ou apavorados, e de juízes covardes ou mal-intencionados): a politização radical dos processos judiciais e a judicialização extrema do processo eleitoral.
Politicamente, nesta altura, é erro primário de leitura analisar o tabuleiro para 2018 sem Lula, como se fosse uma peça que se pode suprimir, apagar, do jogo com uma sentença judicial; como se não fosse, ao contrário, a presença eleitoral em função da qual todos se organizam. Politicamente, preso ou não, com candidatura formalmente viável ou não, com nome na urna ou não, por meio de poste ou não: Lula será candidato.
A questão jurídica, no entanto, permanece a mesma: e aí, doutor, a lei é para todos ou não; Lula é homem comum ou não?
EXTRAÍDADEAVARANDABLOGSPOT
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