Fernando Gabeira: Folha de São Paulo
O naufrágio é a perda do horizonte. Estamos todos em busca do horizonte.
O período que se abre com a denúncia contra Temer tende a ser bastante
confuso. Mas é, de certa forma, um passo previsível na trajetória da
crise em que nos metemos.
Procuro alguns elementos na conjuntura que nos possam ajudar a navegar
na neblina. Os barcos dispõem de sensores precisos. Não temos
instrumentos científicos, apenas algumas intuições. Nossa neblina é mais
densa que a simples condensação de água evaporada.
No entanto, algo se move e duas pequenas luzes parecem tremular ao
longe. Uma delas tranquiliza: a corrupção não acabou, mas dificilmente
terá, nos próximos meses, a mesma intensidade e ousadia do passado. O
risco ficou maior: políticos e empresários não ignoram esse fator. A
outra pequena luz é apenas uma referência. Ela indica que todas as
saídas de curto prazo passam pelo Congresso. Aceitar ou não a denúncia
contra Temer, eleger seu substituto ou mesmo alterar a Constituição,
tudo passará por ali.
À medida que nos aproximamos do ano eleitoral, cresce o poder da
sociedade sobre o Congresso. Pelo menos tem sido assim: com voto aberto
formam-se maiorias que o segredo sufoca.
É verdade que esse Congresso abriu um imenso abismo entre ele e a
sociedade. Mesmo assim, o instinto de sobrevivência costuma reaparecer
nessa época. Não creio que a sociedade vá moldar o caminho em todos os
seus detalhes, mas tem condições de escolher as linhas gerais, na medida
em que as escolhas sejam postas.
Será difícil a cada instante debruçar-se sobre uma realidade deprimente,
vencer a repulsa diante de um jogo político tão baixo. Mas é preciso.
De modo geral, o interesse pela política cresce nas vésperas das eleições.
A denúncia contra Temer encontra nele a mesma resistência que encontram
as denúncias contra Lula. Não há provas concretas, dizem ambos, antes de
atacar os acusadores, ressaltando que são perseguidos políticos.
Ela pode ser rejeitada ou não pela Câmara dos Deputados. Uma vez que o
presidente duvida das provas, questiona sua concretude e conclui pela
inépcia da denúncia, o ideal seria levar o tema ao STF.
Naturalmente, qualquer pessoa tem ideia do que é uma prova. Mas
ultimamente essa palavra tem sido tão questionada que, ao contrário de
outros povos, os brasileiros terão um grau superior de conhecimento
sobre prova. Num futuro próximo talvez todos nós tenhamos uma ideia de
prova, assim como temos uma escalação ideal para a seleção brasileira.
Para alguns, não há provas de que a mala com R$ 500 mil levada pelo
deputado Rocha Loures tenha relação com Temer. Há apenas uma conversa
entre o presidente e Joesley Batista, na qual Temer indica Loures como
seu interlocutor de confiança.
Não há imagens de Rocha Loures entregando o dinheiro a Temer. Não há
certidões oficiais que liguem Lula aos imóveis que a Justiça lhe
atribui.
Os defensores mais ardorosos sempre poderão perguntar: onde está a
imagem de Temer no táxi, recebendo a mala com que Rocha Loures saiu
correndo da pizzaria? Onde está o registro de posse de Lula?
Uma das razões por que a denúncia contra Temer deveria ser aceita pela
Câmara é a possibilidade de o tema ser discutido pelo Supremo, onde cada
um dos juízes pelo menos já discutiu centenas de vezes o que é uma
prova e os limites de sua validade. Mas mesmo no caso de a questão subir
para uma decisão do STF, a sociedade está sempre sujeita, como no caso
do TSE, a um conflito típico da fábula O Lobo e o Cordeiro.
A suposição é de que gastarão horas e latim para definir o que é um
prova, qual a superioridade de uma prova sobre outra, antes de
apresentarem o seu veredicto. Ao cabo dessa discussão podem concluir que
existem provas e que são abundantes, mas devem ser ignoradas, em nome
da estabilidade do País.
Creio que a sociedade esteja acompanhando tudo isso. E o fato de não se
ter manifestado com ênfase se deva à própria confusão do quadro
político.
O que seria eficaz nessas circunstâncias? O movimento “fora Temer”,
inspirado pela esquerda, tem uma visão clara de combater as reformas.
Até mesmo a reforma trabalhista, que contempla as transformações do
capitalismo e uma nova correlação de forças.
Os trabalhadores reais que se viram num mundo precário não contam tanto
como os sindicalizados, os que trabalham com relógio de ponto, numa
disciplina fabril. Trabalhadores, para a esquerda clássica, são os que
alimentam os cofres dos sindicatos com os impostos e povoam a ideia de
uma classe operária dos livros marxistas do século 20.
À precarização do trabalho a esquerda responde com uma aspiração
saudosista de voltarmos todos à segurança do passado, algo desejável,
mas distante da vida real de quem se vira para sobreviver num mercado em
mutação. Essa reforma seria importante no momento.
A da Previdência é necessária, no entanto, mais complicada. Precisaria
de ter um foco no serviço público, que tem grande peso nos gastos e na
cobrança da dívida das grandes empresas.
Isso só se consegue com apoio popular. As corporações têm muita
capacidade de mobilização e as grandes empresas, poderosos defensores.
Daí a expectativa de uma reforma da Previdência a partir da legitimidade
do novo governo.
Apesar de toda a confusão, a sociedade não pode observar o que se passa
como se tivesse um satélite explorando Jupiter. A crise é real,
sobretudo para quem vive no Rio, onde há uma dezena de tiroteios por dia
e um roubo de carga por hora.
Não se trata apenas do fracasso de um sistema político-partidário. Sem
interferência da sociedade ele acabará arruinando o País por décadas.
O que fazer nessa confusão, o que escolher como prioridade para evitar o
pior? Já observamos muito o caos. Talvez seja hora de atenuá-lo.
extraídaderota2014blogsot
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