por Fernão Lara Mesquita O Estado de São Paulo
É meio como a coisa dos assassinatos depois que passaram a ser filmados
nas ruas. A gente sabe como as pessoas se matam desde Caim e Abel. Mas
ver isso ao vivo é sempre muito chocante. Assistir às autópsias, então,
faz a maioria das pessoas passarem a “raciocinar” com o estômago.
É o ponto em que estamos. Às vezes revolta, às vezes abre um oco na alma
ir à minúcia de cada queda delatada, mas novidade mesmo não há. Sempre
foi essa a regra do jogo e ela sempre foi clara. A coisa chegou aonde
chegou porque nos últimos 30 anos ninguém, eleitor ou, principalmente,
autoridade judiciária, jamais cobrou sua aplicação. É perfeitamente
possível, hoje como antes, apurar quem, com “caixa 1” ou “caixa 2”,
arrecadou para financiar eleições, quem aproveitou para se locupletar e
quem, junto com isso, vendeu leis, vendeu a pátria, vendeu a alma ao
diabo pelos faustos do poder. Pode-se traçar de onde saiu e aonde foi
parar cada tostão movimentado. As “contrapartidas”
viraram leis, MPs, contratos e contas na Suíça. Nada que se possa
ocultar. Estão nos anais do BNDES, bilhão de dólar por bilhão de dólar,
as operações de cooptação de um “baixo clero da ONU”
que estenderia para além das fronteiras da América Latina bolivariana
os sonhos de poder e os métodos para conquistá-lo desenhados no Foro de
São Paulo e ensaiados no “mensalão”.
Há, portanto, enormes diferenças na motivação e na extensão da ação e
dos danos produzidos por cada ator da novela da destruição do Brasil.
Isso de condenar a regra que não se aplicou, em vez do desleixo de não
tê-la aplicado, é o padrão que deságua sempre nas insidiosas “jabuticabas” que nos têm mantido fora do mundo e na miséria.
A continuação da parte dessa história que tem como horizonte o “excesso de democracia” praticado na Venezuela depende de se conseguir apagar essas diferenças. É nessa confluência que a força reacionária da “privilegiatura”, pela primeira vez ameaçada de recuo pelas reformas de Temer, se veio somar à correnteza do “lulismo”.
Mas o pior foi mesmo ter o acaso conspirado mais uma vez contra o
Brasil ao fazer coincidir tudo isso com o auge da Operação Lava Jato. É
nesse cruzamento infeliz de forças que, uns arrastando, outros sendo
arrastados pelos vazamentos sucessivos, se viram os guardiões da justiça
forçados a abrir o pacote da Odebrecht “em bruto”, o que aplainou as diferenças e de novo “zerou” o placar eleitoral.
A situação do Brasil, entretanto, não tem mais conserto com paliativos. O
acerto de contas entre os dois Brasis não é mais uma questão de opção. É
uma impossibilidade matemática não fazê-lo. Só falta saber em quantas
etapas sucessivas e com que dose adicional de desperdício e morticínio
ele se dará.
O Estado toma 36% do PIB em impostos e mais 10% do PIB na forma de
déficits. São 2 trilhões e 500 bilhões de reais. Na União, 54% dos
gastos são com aposentadorias e outros benefícios para inativos, 41% são
com salários de funcionários ativos. Só 5% são investidos em qualquer
coisa que não seja pessoal. A média das aposentadorias pagas no “nosso” Brasil é de R$ 1.600. No “deles”,
de R$ 9 mil no Poder Executivo, que propõe a reforma, e de R$ 25 mil no
Legislativo, R$ 28 mil no Judiciário e R$ 30 mil no Ministério Público,
que, em voz alta ou em voz baixa, resistem a ela. Dentro de cada um
desses Poderes, o abismo entre os salários básicos e os balúrdios
acumulados por dentro e por fora da lei, com fraude em cima de fraude,
pelos respectivos “marajás” é ainda mais fundo que o que existe entre salários e aposentadorias dos brasileiros de 1.ª e 2.ª classe. Como “eles” são, ao todo, 10 milhões e os “marajás”,
muito menos ainda, tem-se que perto de 40% do PIB fica nos bolsos de
menos de 5% da população, um grupelho que, em pé, não enche a Praça dos
Três Poderes, com a maior parte dessa fatia concentrada nos de uma
ínfima minoria dentro dessa minoria. Se, portanto, a reforma da
previdência privada é um imperativo demográfico, a da pública é um
imperativo de salvação nacional. Ou nós acabamos com isso ou “eles”acabam conosco.
O que a extensão das delações está provando é que de PSOL a pastor, de
Odebrecht a trabalhador braçal aliciado por advogadozinho achacador,
tudo o que ingressa no “sistema” ou apodrece ou é expelido. Sem reformas que o alterem na essência não existe hipótese de salvação.
Corrupção é, essencialmente, déficit de democracia; impotência do representado diante da falcatrua do representante. “Estatizar” o financiamento de campanhas não conserta isso e implica a “lista fechada”,
que agrava essa impotência. O atrelamento dos sindicatos ao imposto
sindical, por Getúlio Vargas, condenou à morte a democracia no Brasil. O
cerco foi fechado com uma “justiça do trabalho” que, ao institucionalizar o achaque, passou a corromper a base da sociedade. O “apelegamento” dos movimentos sociais e partidos políticos pela Constituição de 88 foi a pá de cal. É impossível pensar em “democracia representativa”
num país onde todas as fontes primárias de representação da sociedade
são sustentadas por impostos e independentes de seus representados.
Contornar a indústria do achaque pela “terceirização”
é condição essencial para a ressurreição do emprego no Brasil. Mas
acabar com o imposto sindical é inverter o polo do mais antigo e
fundamental dos vetores de forças negativas que atuam sobre o “sistema”.
O financiamento de campanhas pelo Estado vai na direção contrária. O
que torna eleições baratas de modo orgânico e saudável é encurtar o raio
do território onde um político está autorizado a pedir votos. E isso se
consegue com eleições distritais, método que, de quebra, torna
explícito o laço de dependência entre eleitores e eleitos, sem o qual é
impossível uns controlarem os outros.
Sim, a Lava Jato é intocável. Mas feche os ouvidos ao barulho e abra os
olhos às evidências. Sem reformas não vamos a lugar nenhum. E fazê-las
aos pedaços vai custar mais do que podemos pagar.
EXTRAÍDADEROTA2014BLOGSPOT
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