Dora Kramer: Publicado na edição impressa de VEJA
Há uma brutal e cínica inversão de conceitos nas teses defensivas do mundo político para tentar zerar o jogo das ilegalidades cometidas há anos impunemente. A rainha do baile é a “criminalização da política”, teoria segundo a qual ao ser intolerante com a transgressão o país põe em risco a atividade de suas excelências. Pura fábula, pois ocorre justamente o contrário: as ações deletérias de políticos é que levaram a política a ser vista como caso de polícia. Ademais, a salvação reside exatamente na mudança de procedimentos em decorrência das punições.
Outra tese falaciosa: as investigações vão gerar injustiças, pois misturam honestos e desonestos “no mesmo barco”. Exagero proposital. Denúncias, para que sejam aceitas, necessitam de indícios; processos, de provas. Concluídas as apurações, a cada um será destinado o “barco” correspondente aos crimes cometidos. Ou não. É assim na Justiça, assim mandam as leis.
Governistas e oposicionistas não parecem compreender o que os levou a essa situação quando se unem no Congresso para engendrar maneiras de passar uma borracha no passado, assegurar foro privilegiado a parlamentares investigados, protegê-los do escrutínio do eleitor sob a saia da lista fechada de candidatos e ainda fazer com que a sociedade tire do bolso o dinheiro para pagar suas campanhas antes financiadas em boa medida por corruptores confessos.
Uma receita perfeita para alimentar a antipatia da opinião pública e robustecer a pauta das manifestações de rua já devidamente agitadas. No entanto, é isso que se engendra nas conversas iniciadas na semana passada entre os presidentes dos três poderes. Deu-se a essa união de interesses o nome de mobilização em prol da reforma política (na hora imprópria e em causa própria). É mais que isso: são tratativas sobre a possibilidade de conseguir uma “acomodação” das forças envolvidas, em particular o Ministério Público.
O Congresso “entregaria” a criminalização do caixa dois em troca de uma visão mais compreensiva por parte do MP sobre os diferentes tipos de crime envolvidos naquela prática. Um modo de abrir uma brecha para contradizer o entendimento de que, a despeito da existência de gradações entre uns e outros ilícitos, todos ferem a legalidade.
É uma tentativa. De difícil execução, mas é a única que suas excelências vislumbram no horizonte. A dificuldade reside na convicção de investigadores e julgadores de que a ideia é mesmo criar um ponto zero na crise, a partir do qual haveria um alegado recomeço. Importante integrante do STF rechaça a hipótese e aponta como prova a continuidade dos delitos mesmo após o julgamento do mensalão e das prisões da Lava Jato. “Continuaram fazendo tudo como sempre”, diz.
Se parlamentares conseguirem aprovar a receita de “salvação” pretendida, Rodrigo Janot deverá contestar, cabendo à Justiça decidir. “Aí veremos o Supremo que temos”, vaticina uma das figuras mais rigorosas e influentes da Corte.
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