Felipe Bächtold e Isabel Fleck, Folha de São Paulo
O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva não havia completado um ano
de mandato, em 2003, quando sancionou uma lei que se tornaria, 15 anos
depois, uma das dores de cabeça em seu embate com a Operação Lava Jato.
Em apenas quatro parágrafos, a lei 10.763 alterava pontos do Código
Penal sobre crimes do colarinho branco, endurecendo, por exemplo, a
punição para o crime de corrupção, cuja pena máxima passou de 8 para 12
anos de prisão.
A regra criada naquela época contribuiu para ampliar a punição imposta ao petista no caso do tríplex de Guarujá (SP) pelo
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que julga os casos da Lava Jato
na segunda instância. A pena por corrupção e lavagem de dinheiro foi
fixada em 12 anos e 1 mês de prisão.
Lula completou dois meses detido nesta quinta (7) em decorrência dessa condenação.
Outro parágrafo da lei, no entanto, promete causar ainda mais transtorno
daqui para frente: o que condiciona a progressão de regime à "devolução
do produto do ilícito praticado".
Isso significa que, caso não reverta a sua condenação ou sua prisão nas
cortes superiores, o ex-presidente só poderá passar ao regime
semiaberto, após cumprir dois anos em regime fechado, se já tiver pago a
indenização de R$ 13,7 milhões, com juros e correção, determinada pelo
TRF-4.
O veto à progressão de regime caso não sejam devolvidos os valores
desviados já vem impedindo que condenados da operação passem para o
semiaberto na Lava Jato.
No caso de Lula, o fato de ele ter sido o presidente a sancionar a lei
que hoje se tornou um obstáculo em seu caso é uma "fatalidade natural e
legal", na opinião do coordenador da pós-graduação em Direito Penal
Econômico do Instituto de Direito Público de São Paulo, Fernando Castelo
Branco.
"Temos um processo legislativo em que o Congresso vota, decide e o
presidente da República promulga", diz o especialista. "Na condição de
presidente, ele seguiu esse processo legislativo outorgando a eficácia
para essa legislação."
Foi Lula também quem sancionou a Lei da Ficha Limpa, em 2010, que se
tornou hoje outro entrave em sua trajetória. A legislação barra
candidaturas de condenados em segunda instância, como ele, e foi
aprovada no Congresso após um projeto via iniciativa popular, com mais
de 1,6 milhão de assinaturas.
Ainda na área judicial, o petista deu a assinatura final, no início de
seu governo, em legislação que prevê a emissão anual de um atestado de
cumprimento de pena aos presos, o que beneficia os detentos.
EFEITO NO MENSALÃO
A lei anticorrupção de 2003 já havia provocado dificuldades para o PT na
época do julgamento do mensalão, quando também favoreceu o aumento de
penas de acusados como o ex-ministro José Dirceu. Advogados chegaram a
argumentar que os fatos julgados eram referentes a um período anterior à
sanção e que seus efeitos não se aplicariam a esses réus.
Na Lava Jato, a defesa de Lula chegou a mencionar a edição da lei 10.763
como uma prova da atuação do ex-presidente contra a corrupção. Essa
legislação, disseram seus advogados em nota em 2016, mostra "sua
intenção atuação para aperfeiçoar o sistema de combate à corrupção e a
defesa do patrimônio público". À época, a afirmação foi feita para
rebater acusações do ex-senador pelo PT e delator Delcídio do Amaral.
A lei, no entanto, começou a ser discutida no Congresso bem antes de
Lula chegar ao poder, em maio de 2002, em uma comissão mista instaurada
para acelerar projetos de segurança pública.
Quando foi sancionada, não houve pronunciamento a respeito nem
divulgação pelo governo. A temperatura política tinha aumentado por
causa da Operação Anaconda, uma das primeiras grandes investigações da
Polícia Federal que marcariam o mandato e que prendeu acusados de vender
sentenças judiciais.
O então presidente da comissão mista, Íris Rezende (MDB), diz que houve
resistência entre parlamentares, mas que as mudanças foram inseridas num
esforço maior, para aprovar mais de 60 projetos de segurança pública.
"O mesmo sentimento que você nota hoje junto à sociedade brasileira era o que se observava naquela época", disse Rezende, hoje prefeito de Goiânia. "Havia a preocupação de impor mais responsabilidade àqueles que tinham o poder de decisão."
Hoje, Rezende diz ver "com muita tristeza" que Lula é um dos alvos da
lei que sancionou. "Quando vejo parlamentares ilustres, chefes de poder
condenados, fico estarrecido."
O próprio Rezende foi citado por três delatores da Odebrecht em 2017 por
supostamente ter recebido R$ 300 mil de caixa dois em sua campanha ao
governo de Goiás em 2010. O prefeito nega a acusação. "Aquilo era doação
legal para as eleições", disse à Folha.
Castelo Branco destaca que a exigência de pagamento da reparação de
danos para a progressão de pena já vem sendo revisto em casos em que o
réu demonstra não ter condições de devolver o valor desviado --o que a
defesa de Lula poderia argumentar.
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