por Roberto Livianu O Estado de São Paulo
Na Itália, a Operação Mãos Limpas naufragou porque não houve mobilização da sociedade e após ser atingido o coração das organizações criminosas o corpo político reagiu estrategicamente, usou o poder de forma contundente e elaborou leis que impediram o prosseguimento do trabalho dos juízes e do Ministério Público (MP).
Legislou-se contra o bem comum, visando à autoproteção diante da letargia do povo, e as conquistas da Mãos Limpas foram por água abaixo. Esse roteiro é de pleno conhecimento do juiz Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato.
Temos vivido outro processo histórico, especialmente a partir de junho de 2013, quando o povo saiu às ruas – aparentemente para protestar contra um aumento de tarifa de ônibus. Logo se percebeu que os motivos eram muito mais graves: insatisfação com a política e os partidos.
Por isso foi rejeitada a PEC 37, que a Câmara, então presidida por Henrique Alves (preso por corrupção), pretendia aprovar para monopolizar a investigação criminal nas mãos da polícia, impedindo o MP de fazê-lo. Foi rejeitada por 430 x 9.
Além da rejeição da PEC 37, a Câmara aprovou naquele momento também as Leis 12.846 (anticorrupção) e 12.850 (delação premiada), mas, infelizmente, a verdade é que esse movimento teve o exclusivo objetivo de acalmar a sociedade. Quando a situação voltou a estar razoavelmente sob controle, reapresentou-se a crise de representatividade política que vivemos já há vários anos, com o descumprimento grave do papel de mandatários e partidos.
Aliás, as legendas políticas, em especial de centro e de direita, há mais de dez anos vêm rejeitando a denominação “partido” em seu nome. Querem esconder que o são. O PFL em 2007 deu início ao movimento transformando-se em DEM. Depois, o Solidariedade (2013), o Novo e a Rede (ambos em 2015). O PMDB baniu o P da sigla, assim como o PTN, que virou Podemos. Esses são apenas alguns exemplos.
No Congresso, diversas proposituras legislativas que não visam à proteção do bem comum nem à eficiência no combate à corrupção têm sido observadas nos últimos anos. Ao contrário, percebe-se nelas o objetivo de enfraquecer o sistema de Justiça e criar obstáculos ao trabalho de magistrados e do MP.
Nessa linha, a PEC 89/2015, que propunha a estranha criação de juizados de instrução presididos por delegados de polícia. Como o nome já diz, juizado é presidido por juiz, que colhe provas sob o crivo do contraditório. Para um delegado poder exercer funções de juiz deve ser aprovado em concurso para juiz, sob pena de violarmos o princípio constitucional da separação de Poderes, porque delegados são subordinados ao governador ou ao presidente e quem preside um juizado de instrução deve ser independente.
Em 29/11/2016 tivemos o público e notório pisoteamento das 10 Medidas contra a Corrupção, subscritas em projeto de iniciativa popular por quase 3 milhões de cidadãos brasileiros. E exatamente uma semana antes, à exceção de apenas quatro dos 35 partidos – Rede, PSOL, PHS e PPS –, os demais articularam anistia para todos os ilícitos praticados com caixa 2 eleitoral e pretendiam aprová-la em votação secreta. Isso só não se concretizou porque a manobra acabou vazando e a sociedade se mobilizou, reagindo fortemente contra a iniciativa.
Recentemente, sem alarde, o PL 7.448 caminhou sem discussões, sem audiências públicas na Câmara, sem debate em plenário e foi aprovado, trazendo em seu bojo simplesmente o desmantelamento do sistema de combate à corrupção, afetando especialmente o TCU, permitindo contratações com graves afrontas à lei sob o argumento de “modernização do sistema”. Seria um ataque grave ao Direito Administrativo. Nos “acréscimos do segundo tempo”, a sociedade civil virou o jogo com muita luta, conseguindo demonstrar os riscos do projeto, o que levou o presidente da República a vetar os mais escandalosos dispositivos.
O que se percebe em todas as situações é que o farol que tem iluminado o exercício do poder é apenas o da autoblindagem, como detectou a pesquisa Latinobarometro 2017 (97% dos brasileiros consideram que os políticos somente exercem o poder em próprio benefício), ganhando força, por isso, ideias como a das candidaturas avulsas.
Não foi diferente a inspiração do projeto que pretendia impedir a colaboração premiada de presos, ferindo frontalmente o princípio da isonomia, assim como o decreto de indulto presidencial “Black Friday”, que liquidava 80% das penas de corruptos numa canetada, esta contida pelo STF.
Nesse cenário surgem agora o projeto do novo Código de Processo Penal (CPP), sob a relatoria do deputado Delegado João Campos, e o “Estatuto de Responsabilidade Civil”, de autoria do deputado Hugo Napoleão (o mesmo proponente da PEC 89). São projetos que exigem extrema atenção da sociedade. Trazem questões delicadíssimas dentro de si.
O projeto do CPP (elaborado por advogados e professores) estipula prazo de duração para inquéritos, como se fosse possível haver uma tabela e como se os casos não tivessem complexidades distintas. Passou o prazo, impunidade! Além disso, a prova colhida nos inquéritos é jogada fora e desconsiderada no processo, e sem cerimônia ressuscita-se a PEC 37, pois novamente se vulnera brutalmente o poder de investigação do MP, mesmo depois de decisão do pleno do STF que o consolidou.
O “Estatuto da Responsabilidade Civil” nada mais é que o projeto do abuso de autoridade maquiado e disfarçado, que pretende, na verdade, minar a independência do Judiciário e dificultar o combate à corrupção, o que reforça as evidências de não mais vivermos uma real democracia, mas uma verdadeira tirania, em que se pretende de forma indisfarçável tornar inviável o exercício livre da magistratura e do Ministério Público no Brasil.
*DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROMOTOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO
extraídaderota2014blogspot
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