por Fernando Gabeira O Estado de S.Paulo
Passei uma semana no centro de São Paulo, antes da queda do prédio de 24
andares no Largo do Paiçandu. Meu foco era a Cracolândia, mas não
deixei de registrar a grande presença de moradores de rua, cerca de 25
mil na cidade, e os prédios ocupados pelos movimentos de sem-teto.
Um deles me impressionou. Tinha 20 andares, a pintura encardida e
cortinas rosa, vermelhas, verdes, algumas improvisadas com papelão. A
imagem me levou a alguns minutos de contemplação.
Um funcionário da Secretaria de Habitação me informou que havia
negociações em curso para comprá-lo e achar uma saída, antes que as
coisas ficassem mais graves. Um prédio com as mesmas características
pegou fogo e desabou. Havia negociações em curso.
Como entendo pouco do tema, procurei saber algo mais com os atores
envolvidos. Supunha que divergências ideológicas estivessem travando
soluções de consenso. Saí de São Paulo com uma sensação de que o
problema é tão complexo que o ideal seria definir pontos de convergência
e tentar algumas soluções, inclusive para a Cracolândia.
Não deixa de ser ingênuo desejar que as pessoas deixem a rigidez
ideológica na porta e discutam de uma forma madura medidas pragmáticas.
Os que se apoiam na ideologia e dependem do conflito para mobilizar
precisam experimentar também pequenas realizações para descobrir que não
se cresce só brigando, mas também fazendo acordos.
Existem setores que vão resistir. Na Cracolândia, por exemplo, o crime
organizado está presente e quer manter as coisas como estão. Como
explicar a invasão e o saque aos prédios populares que eram a vitrine do
governo Alckmin naquela região?
Os moradores do prédio no Largo do Paiçandu pagavam entre R$ 200 e R$
500 de aluguel. O movimento político que administrava a invasão tem
interesses materiais no status quo.
Pelo que pude observar, examinando propostas do governo e dos
intelectuais de esquerda que fizeram o projeto de renovação dos Campos
Elísios, algumas casas populares estavam nos planos de ambas as partes.
Apesar do grande desastre no Largo Paiçandu, o que senti nas ruas de São
Paulo é que os moradores de rua estavam vivendo um momento favorável,
se é possível dizer isso. Foram dias de sol e o verão abriu lugares
menos hostis. Eu os vi na lateral da Prefeitura e do outro lado da rua.
São muitas as ONGs e igrejas que procuram alimentá-los. No inverno as
coisas ficam mais difíceis – 25 mil pessoas ao relento equivalem à
população de muitas cidades do interior. Como agasalhá-los ou mesmo
prevenir doenças e morte? A isso se soma o fato de que mais de 1 milhão
de pessoas vivem em condições precárias de habitação.
Ao observar o que se passa na Cracolândia e no centro, outro ângulo me
preocupou: a segurança biológica. Vivemos tempos difíceis e o próprio
Bill Gates ao lado de um grupo de cientistas advertiu sobre o perigo das
epidemias, que podem ser devastadoras. É preciso incluir essa dimensão
no planejamento urbano, evitar a vulnerabilidade de parte da população
porque, em tese, o destino de todos está em jogo.
Minha viagem a São Paulo foi uma introdução à gravidade do problema. Ele
não acontece por acaso: milhares de pessoas deixam suas cidades em
busca de uma chance na metrópole.
Mas São Paulo é maior que esse problema. Isso não significa que não se
viva aqui um dos grandes dramas nacionais. O prédio desabado, por
exemplo, era do governo federal.
Os candidatos a presidente poderiam fazer uma visita ao centro de São
Paulo. Mesmo que isso não os motive, pelo menos conheceriam um
importante aspecto do país que pretendem governar.
Mencionei a Cracolândia e o centro num artigo na semana passada,
desejando aprender com as soluções e torcendo por elas. Concluí que se a
sensação de urgência não prevalecer sobre a rigidez da visão
ideológica, corremos o risco de tornar o Brasil ingovernável.
A queda de um edifício de 24 andares no centro da maior e mais rica
cidade do Brasil é algo forte demais para ser um episódio perdido no
tempo. Para mim, o lugar é uma espécie de marco zero. Não só o terror
devasta, mas também anos de indecisão e descaminhos.
Soluções amplas para problemas dessa dimensão precisam de dinheiro. Se
puder vir de todas as fontes, melhor. O governo federal tem uma
secretaria de drogas. Não é possível que não tenha uma política para a
Cracolândia, onde o drama se mostra sem máscara.
Uma renovação desse território é tão desafiadora que até o seu êxito
pode criar novos problemas: uma política bem-sucedida com a população de
rua, em tese, pode atrair mais gente para a metrópole.
Casas populares numa área economicamente forte podem originar o que os
ingleses chamam de gentrificação. Elas se valorizam, os moradores as
vendem para gente de mais poder aquisitivo. Mas é melhor tratar com eles
do que com o fracasso. Na verdade, as coisas estão mudando na região,
mas num ritmo ainda lento.
Um hospital será construído na Cracolândia, o Pérola Byington. A base
policial montada no Largo Coração de Jesus é elogiada pelos moradores.
Embora os soldados não cheguem até o chamado fluxo, a concentração de
usuários de crack, eles garantem uma segurança no entorno.
Três postos do governo acolhem usuários e moradores de rua em espaços
onde podem comer, tomar banho, dormir, obter documentos e até fazer
terapia musical. Comparando imagens que fiz agora com as do passado,
cheguei à conclusão de que houve uma redução, um progresso territorial
que afastou de uma praça e alguns outros pontos a concentração de
usuários.
Tomara que a queda do edifício ajude também a apressar os passos dados,
desatar longas negociações. Por que tragédias num lugar que pode ser um
dos mais atraentes da metrópole?
extraídaderota2014blogspot
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