por Aloísio de Toledo César O Estado de São Paulo
Com o passar dos dias e das noites, é curioso observar que a condição de
prisioneiro do ex-presidente Lula da Silva já não é com tanta
frequência objeto das primeiras páginas dos jornais e vai passando,
gradativamente, para as páginas internas, sem o mesmo destaque que
existia até algumas semanas atrás.
O que ainda desperta curiosidade é a perspectiva de ele poder inscrever a
candidatura às próximas eleições presidenciais. Para essa inscrição
talvez não sejam grandes as dificuldades, mas para que seja admitida sem
discussões e ele possa participar do pleito será necessário negar a
existência da Lei Complementar n.º 135, a chamada Lei da Ficha Limpa.
A expressão “lei complementar” significa que ela complementa disposições
constitucionais, ou seja, é uma lei infraconstitucional em pleno vigor,
que restringe a possibilidade de candidaturas a cargos políticos. Sua
natureza tem enorme legitimidade, por ser fruto de um projeto de
iniciativa popular, em especial de movimentos de combate à corrupção,
que também mobilizou a Associação Brasileira de Magistrados,
procuradores e promotores eleitorais, a Central Única dos Trabalhadores
(CUT), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), além de organizações não
governamentais e até mesmo a Igreja Católica.
A coleta de assinaturas teve início em 2008, no ato de aprovação da
campanha pela assembleia-geral da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), uma das entidades integrantes do movimento.
Dada a legalidade e legitimidade dessa lei complementar, se ocorrer
eventual negativa de sua eficácia, para admitir a candidatura à
Presidência da República de um criminoso preso por delitos contra a
administração pública, com condenação transitada em julgado, estaríamos
desmerecendo as instituições do nosso país e jogando fora os esforços de
tantos brasileiros que se empenharam pela aprovação da lei.
O objetivo principal da Lei da Ficha Limpa foi barrar candidaturas a
cargos eletivos de pessoas que não tenham os requisitos morais
necessários ao exercício do mandato político, por condutas ofensivas à
legislação em vigor, especialmente a criminal. Uma das principais
disposições inovadoras foi a abolição da exigência do trânsito em
julgado da decisão judicial para fins de inelegibilidade, bastando a
existência de decisão proferida por órgão judicial colegiado (em geral,
três desembargadores).
O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou em termos definitivos pela
constitucionalidade da lei, mas ainda perduram controvérsias suscitadas
com base no princípio legal da presunção de inocência, ou seja, o
caráter sancionatório e a ausência de previsão do trânsito em julgado da
decisão constituiriam violações dos direitos fundamentais.
Já se tem dito que a admissão da presunção de inocência em termos
ilimitados serve principalmente para alimentar o sentimento coletivo de
impunidade, ou seja, aquela visão desarrazoada de que neste país se pode
fazer de tudo sem que a punição venha a tempo.
Tal sentimento existe desde a descoberta do Brasil, quando Cabral,
naquele 21 de abril de 1500, trouxe em sua comitiva o ex-desembargador
da Casa de Suplicação de Lisboa, frei Henrique de Coimbra, que chegava à
nova terra para dilatar a fé e já lançar raízes para a atuação da
Justiça.
Esse engatinhar da tarefa jurisdicional começou com falhas, que foram
ampliadas com a chegada de Martim Afonso de Souza, em 1532, porque pôs
em vigor leis polêmicas, que previam o degredo em solo brasileiro, ao
mesmo tempo que crimes cometidos em outros lugares seriam considerados
prescritos, com o recebimento do perdão.
Certamente o sentimento de impunidade, tão vivo em nossos dias, tem sua
origem naquela conduta equivocada dos tempos da colonização. O ato de
pilhar, de avançar sobre aquilo que não é nosso, porque nada acontecerá,
ou serão mínimas as consequências, acompanha o nosso dia a dia. E
vemos, sobretudo, hoje que grupos incrustados no poder insistem em
confundir os bens públicos com os seus, num desrespeito incessante à lei
e ao Direito.
O ex-presidente Lula é exemplo eloquente dessa distorção, pelo avanço
que ele e seus aliados mais próximos (quase todos presos como ele)
fizeram sobre o dinheiro público, a princípio sob o pretexto de acabar
com as desigualdades entre ricos e pobres, mas depois, progressivamente,
com enorme descaramento, para distribuir criminosamente para os mais
ricos volumes imensos de dinheiro do País. Nunca mais, desde a primeira
eleição, se viu Lula andar ao lado de um pobre.
Curiosamente, os processos judiciais que resultaram na prisão de Lula e
de muitos outros políticos de má fama concorrem de certo modo para
arrefecer o sentimento de impunidade que existe em relação ao Brasil,
sobretudo no exterior. Realmente, num país em que o ex-presidente da
República, com expressivo apoio popular e eleitoral, acaba punido e vai
para a cadeia, isso é sinal de que as instituições estão funcionando.
Em verdade, poderiam funcionar melhor se o Supremo Tribunal Federal
deixasse de invadir a seara de outros Poderes, em especial o
Legislativo, e não abusasse da passividade do Congresso Nacional - um
Congresso no qual muitos de seus integrantes agem corriqueiramente em
favor de si próprios, esquecendo que sua missão constitucional é
defender o País.
É triste ver o enorme número de congressistas envolvidos em processos de
corrupção, muitos deles às vésperas de previstas condenações. Eles
traíram a confiança dos seus eleitores. Nesse panorama, em que muitos
dos suspeitos serão candidatos à reeleição, resta esperar que os
eleitores tenham juízo e escolham bem.
* DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJSP, FOI SECRETÁRIO DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
extraídaderota2014blogspot
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