por José Augusto Guilhon Albuquerque O Estado de São Paulo
Das crises que se sucederam desde a queda do Estado Novo, nenhuma foi tão intensa e longa como a atual. Desencadeada com a eleição de Dilma Rousseff em 2014, não se encerrou com a posse definitiva de Michel Temer, e já ingressou em seu terceiro ano. Seu desfecho e seus efeitos sobre a sobrevivência da democracia representativa e das liberdades públicas são imprevisíveis.
O atual processo de deterioração da institucionalidade política começou como uma crise da Presidência e, tal um zika vírus, foi provocando degeneração ao longo do sistema nervoso central da República. No âmbito da Presidência, a crise manifestou-se numa combinação de ativismo e paralisia, pois, embora incapaz de montar seu próprio Gabinete e dar rumo e consistência às ações de seu governo, a presidente Dilma adotou um ativismo decisório que provocou falência múltipla dos órgãos governamentais do Executivo.
Os demais Poderes e suas instituições continuaram funcionando – mal, segundo alguns –, cada um afetado por suas próprias limitações, que continuaram produzindo inevitáveis atritos, próprios da separação entre Poderes. Para além dos eventuais atritos – a exemplo da assim chamada judicialização da política –, o sistema político sobreviveu à destituição da chefe do Executivo sem maiores abalos na ordem legal, apesar da relação conflituosa entre o Legislativo – especialmente a Câmara dos Deputados – e o Executivo.
Atribuir a queda do governo Dilma a uma paralisia decisória é um erro crasso. O que de fato ocorreu foi um ativismo decisório das instituições básicas de nosso sistema político, refletido em ações unilaterais precipitadas, inconsistentes e frequentemente contraditórias. Exemplo cabal é o da presidente, tentando corrigir o fracasso de sua receita econômica criativa, dobrando a dose sucessivamente até levar o doente à UTI.
Outro é o festival de retaliações protagonizado por Dilma e Eduardo Cunha. Seu resultado – com a reviravolta da bancada petista a favor da cassação de Cunha por falta de decoro, e o troco de Cunha, admitindo o processo de impeachment da presidente – foi a ruptura dos limites institucionais. Isso deu salvo-conduto ao ativismo político à sombra das instituições. Não é que as instituições tivessem deixado de funcionar ou se bloqueassem mutuamente. O mais grave é que sua missão fundamental – determinar normas que estabelecem os limites da legitimidade das decisões de suas instâncias e coibir a manifestação de interesses e a prevalência de escolhas morais e políticas unilaterais – foi posta em segundo plano.
Liberados das amarras da letra da lei, entre 15 de novembro e 17 de dezembro de 2015, Teori Zavascki decidiu unilateralmente mandar prender um senador da República sem autorização prévia do Senado e sem flagrante delito; Luiz Fachin propôs-se a elaborar, “em relação ao exame da constitucionalidade, e da recepção, no todo ou em parte, da lei de 1950, um rito que vai do começo ao final do julgamento do Senado”; e Roberto Barroso, sem mais aquelas, desfigurou inteiramente – para usar um termo ao gosto do ativismo generalizado que hoje grassa – as prerrogativas constitucionais do Legislativo.
Passado um ano, já ninguém se surpreende quando, com base apenas em suas convicções morais, um grupo de procuradores usa recursos públicos para divulgar suas conclusões pessoais sobre investigações ainda em curso, ou para dar ultimatum aos legisladores. Ou, o que é pior, deixa claro que o Legislativo não tem o direito de contrariar a opinião deles sobre o que é melhor para o País.
Tampouco surpreende que, longe de tentar a via das mútuas concessões, parte significativa do Legislativo entre numa queda de braço com o Judiciário – por mais que coberto de razões; que um líder de partido no governo peça a renúncia do presidente da República, membros do Executivo envolvam a Presidência em questiúnculas ou que um ministro “grampeie” o chefe de Estado e ainda seja tratado como herói.
Agentes institucionais, nos mais altos escalões da República, julgam lícito atuar como ativistas justiceiros, em nome de suas convicções morais ou políticas. Já não se importam com a letra da lei, nem pestanejam diante das consequências dos seus atos, destituindo o sistema político de sua pedra angular, a segurança jurídica e política.
Quando o conflito aberto entre as instituições básicas do sistema político torna impossível garantir que não haverá alguém, imbuído do poder de assinar uma liminar, capaz de cassar os efeitos da chamada PEC do Teto, ou reentronizar no poder Dilma Rousseff, então a democracia representativa, e as liberdades que ela garante, continuarão em risco.
Ainda existe alternativa entre cumprir a agenda de reformas – do gasto público, da Previdência, da legislação do trabalho, da remoção dos entraves seculares à dinamização das exportações e ao investimento estrangeiro –, para cuja aprovação o Executivo tem contado com amplo apoio no Congresso e na elite dirigente, ou, então, assistir à desmoralização irremediável da classe política e do Judiciário, incapazes de conter o ativismo irresponsável de muitos de seus membros. É preciso pôr um paradeiro nas pautas-bomba, que hoje são inaceitáveis, com ou sem razão, tanto para o Judiciário quanto para o Legislativo ou para o Executivo, a fim de que, mediante concessões mútuas, seja possível, pelo menos, remendar o mito da separação entre Poderes, sobre o qual se assentam a nossa República e a nossa liberdade.
Com os demais Poderes sob suspeição mútua, e como só o poder se opõe ao poder (Montesquieu), talvez um pouco de ativismo presidencial, com apoio em sua sólida base parlamentar, ouse vetar liminarmente – até que “prevaleça o bom senso” – qualquer tentativa de impor uma pauta que, caso aprovada, levará fatalmente à derrocada do regime e, com ele, de nossa liberdade.
PROFESSOR TITULAR DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP
extraídaderota2014blogspot
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