por Arnaldo Jabor O Globo
Gosto muito do dito latino: “Credo quia absurdum”, ou seja, “creio,
mesmo que seja um absurdo”. É a raiz de toda fé, seja em Deus, em uma
superstição ou numa ideologia.
Por isso, me pergunto: se os católicos explicam de algum modo sua fé na
Santíssima Trindade; se os muçulmanos nos falam que “Só Alá é grande” e
detalham no Corão as regras de sua religião; se os evangélicos ensinam
seu catecismo, por que tantos intelectuais e artistas brasileiros não
nos explicam por que apoiam o Maduro, por que fazem manifestos de apoio à
Coreia do Norte, como fez o PCdoB?
Como podem ignorar os escândalos evidentes de uma quadrilha de corrupção
que está levando o país à bancarrota? Ninguém fala nada? Por que se
negam a detalhar os caminhos dessa “religião” que professam? Será que
não viram a queda do muro de Berlim, o fim vergonhoso do socialismo
real? Será que a mistura de leninismo com bolivarianismo que apoiam tem
alguma lógica inquestionável que ignoramos? Haverá alguma equação que
decifre o emaranhado de suas mentes, algo assim como “penso assim, por
isso e por isso, logo...”?
Não; não dizem nada — só apoiam e creem. Será que nos deixam babando de
curiosidade porque não querem dar luz aos cegos da “pequena burguesia”?
Por isso tento entender seu labirinto de ilações, de deduções, de
reviravoltas com que constroem o “Caminho de Santiago” que teimam em
percorrer. Em primeiro lugar, eu acho que renegar as evidências é uma
maneira de se sentirem portadores de uma verdade inatingível pelos
homens comuns. Nos olham com o desprezo de homens superiores.
Para eles é impossível aceitar que o mundo não se molda apenas pelos
desejos humanos, mas pela marcha das coisas. Se acham os sujeitos certos
de uma História errada. Consideram as provas cabais da roubalheira como
armações da “direita” ou apenas as “contradições negativas”,
superáveis, passageiras, de um processo histórico que tende para o “bem”
de todos. Eles se acham parte de um seleto grupo de apóstolos que
resistem às sedições do mercado e do capitalismo — as fontes do “eterno
mal”. Nossa alma ibérica rançosa, nosso mal endógeno de patrimonialistas
perniciosos são considerados coisas menores.
Para eles, toda a culpa de nosso atraso foi só do “imperialismo
norte-americano”, a contradição principal. Eles rejeitam a circularidade
da vida, o mistério dos desejos, as mutações da sociedade. Eles acham
que a sociedade é um bando de imbecis que têm de ser protegidos contra
sua ingenuidade. Por isso, precisam de um guia, seja o antigo Prestes ou
hoje o Lula. Temos de ser controlados pelo Estado que tudo vê, como uma
divindade ante a qual devemos nos ajoelhar. E não veem que é justamente
o contrário — que aqui a sociedade é que mantém vivo um Estado falido.
Eles acham que mudar de ideia é falta de caráter e que macho mesmo não
muda. Eles acham que quem quiser alguma positividade é traidor. Por
isso, quero entender qual é o caminho que as suas ideias percorrem antes
de irromper de suas bocas e de seus sorrisos de mofa, do alto de sua
superioridade.
Bem... sua fé ideológica pode nascer por antigas humilhações a serem
vingadas por um voluntarismo neurótico que prove sua grandeza
imaginária. São em geral fracassados e professam essas ideias para
ocultar seu fracasso absoluto. A certeza férrea que os habita pretende
evitar dúvidas sobre sua ignorância arrogante, sem “vacilações pequeno
burguesas”, como eles chamam. A ideologia os conforta. Como sentenciou
um dia Nelson Rodrigues: “Só os canalhas precisam de uma ideologia que
os absolva e justifique”.
Eles se sentem dentro da linha justa. Os islamitas sonham com o paraíso
das 11 mil virgens, eles sonham com um futuro de harmonia, onde todos
terão tudo, cada um “dentro de sua necessidade e de sua capacidade”.
Como eles não têm poder real (vejam a miséria do PT) inventam um poder
paralelo que eles professam. É um “‘sendero luminoso”, é um país
imaginário onde habitam, uma ilha da utopia que anda escangalhada mas
que um dia (quando?) vai prevalecer. Me fascinam também as contorções
acrobáticas que leninistas decepcionados praticam para revitalizar suas
crenças. É a turma do “mesmo assim”.
Mesmo com essa cagada nacional, preferem se agarrar em palavras de ordem
antigas do que reconhecer um fracasso óbvio. Os renitentes intelectuais
orgânicos dirão: “O PT está desmoralizado, mas mesmo assim ainda é um
mal menor que o inimigo principal: os neoliberais. Sabemos que está tudo
uma merda, mas da merda nasce a luz”.
No Brasil, a palavra “esquerda” continua o ópio dos intelectuais.
Pressupõe uma “substância” que ninguém mais sabe qual é, mas que
“fortalece”, enobrece qualquer discurso. O termo é esquivo, encobre
erros pavorosos e até justifica massacres. E eles se sentem “vítimas” da
nossa desconfiança de estúpidos que ainda não viram a “verdade”. Eles
não querem entender que a miséria do país é uma consequência e não a
causa. Eles amam a miséria, a Academia cultiva a “desigualdade” como uma
flor. A miséria tem de ser mantida “in vitro” para justificar teorias
velhas e absolver incompetência. Para eles, o socialismo é um dogma.
Diante dele, abole-se o sentido crítico. É como duvidar da virgindade de
Nossa Senhora.
Como podem achar que este pobre povo de miseráveis e analfabetos vai se
erguer contra o “neoliberalismo”? Só a loucura explica isso. Antes
achavam que a luta de classe era o motor da História. Para eles hoje o
motor da História está em uma espécie de “miséria revolucionária”. Não é
possível que homens inteligentes não vejam este óbvio uivante,
ululante.
Não esqueçamos que a burrice é uma categoria fundamental para entendermos suas cabeças.
O que mais me grila é que não parece se tratar de um período histórico
regressivo. Será que é uma crise passageira que, uma vez terminada, o
país volte ao “normal’”? Não. É um salto para outra anormalidade sem
fim; é uma mudança de estado. Temo que não seja uma doença que passa;
talvez seja uma anomalia incurável.
extraídaderota2014blogspot
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