Imprensa existe para fazer contraponto
Dilma Rousseff não dá um passo sem ouvir seu marqueteiro. João Santana é, de fato, seu primeiro-ministro. Competente na arte de embalar produtos, Santana vende bem a imagem de sua cliente. Compromisso social, capacidade de gestão e firmeza são, entre outros, os supostos atributos da presidente.
Os fatos, no entanto, acabam prevalecendo. É só uma questão de tempo. E os fatos estão gritando na força dos números econômicos, na qualidade objetiva da governança e na adequação entre discurso e vida.
Dilma Rousseff faz questão de frisar seu compromisso de combate à pobreza e sua visão de mundo oposta ao ideário dos representantes das elites que sempre “dominaram este país”. Mas o que revela uma vida não é o discurso, mas a prática concreta. Espera-se da presidente austeridade de vida e distância das benesses do poder. Não é o que se deduz de sua recente escala sigilosa em Lisboa.
Dilma Rousseff e sua comitiva passaram um fim de semana em Portugal, ocupando um total de 45 quartos de dois dos hotéis mais caros de Lisboa. A viagem estava sendo mantida em sigilo e apenas foi explicada depois que a reportagem do jornal “O Estado de S. Paulo” a revelou com exclusividade. A suíte que Dilma utilizou no hotel Ritz está tabelada em 8 mil euros por dia (cerca de R$ 26 mil). Entre Davos e Cuba, Dilma e sua delegação decidiram passar o sábado em Lisboa, sem informar ao público onde a presidente estava.
Na noite do sábado, ao contrário do que o Palácio do Planalto havia informado, Dilma saiu para jantar no elegante restaurante Eleven. O Planalto chegou a dizer ao “Estado” que ela estava “dormindo”. Mas uma foto publicada no jornal português “Expresso” deixou a comitiva sem explicações. Na foto, Dilma está entrando no luxuoso restaurante, acompanhada pelo embaixador do Brasil em Portugal, Mario Vilalva. O restaurante é um dos melhores de Portugal e um dos poucos no País classificados com a estrela Michelin.
Oficialmente, a explicação para a parada em Portugal é a de que o avião presidencial não teria autonomia para viajar entre Zurique e Havana. Mas o Planalto não explica nem por que a visita foi mantida em sigilo e nem por que o abastecimento do jato não poderia ter ocorrido com a comitiva dentro do avião, algo que levaria cerca de uma hora, comenta o jornalista Jamil Chade.
O episódio, revelador, provocou muita irritação. Ótimo. É assim que deve ser. A imprensa existe para fazer o contraponto, para revelar as incoerências, para exercer um papel fiscalizador. E não se invoquem razões de segurança ou respeito à privacidade para justificar o absurdo sigilo. Dilma pode falar o que quiser, mas, depois do episódio, terá dificuldade para criticar os desvios da elite.
Não pode existir uma separação esquizofrênica entre vida privada e vida pública. Há atitudes na vida privada que prenunciam comportamentos na vida pública. E há atitudes na vida concreta que revelam inequívoca mistura entre o público e privado.
A agenda da presidente da República deve ser de conhecimento público. E a imprensa, corretamente, precisa contornar injustificadas tentativas de sigilo. O segredo não é bom para a sociedade.
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