por Fernão Lara Mesquita O Estado de São Paulo
Quinze dias atrás, com Um caso de cura da nossa doença,
mostrei aqui como, começando pelo Oregon, em 1902, as “reformas
Progressistas” empurradas por Theodore Roosevelt presidente implantaram o
sistema de democracia semidireta, que pôs o comando da política nas mão
dos eleitores e a corupção sob controle, nos EUA, após uma crise em
tudo semelhante à do Brasil de hoje.
Essa revolução se esgueirou pela brecha aberta pela Constituição da
Califórnia de 1879, que garantiu às suas cidades o direito de criar as
próprias constituições. A política de todo o Oeste do país era dominada
pelos donos das ferrovias, que controlavam as estruturas partidárias
estaduais. Operando serviços públicos essenciais que só forneciam a quem
lhes declarasse obediência, os caciques a soldo das ferrovias tinham
força para bloquear ou desfazer todas as reformas tentadas por prefeitos
independentes. Ao fim de dez anos de luta contra os chefões em São
Francisco, Los Angeles inscreve na sua, em 1889, os direitos de
iniciativa, referendo e recall,
que só chegariam à Constituição estadual da Califórnia em 1903. A
partir daí foi uma avalanche. Sacramento em 1903, San Bernardino, San
Diego, Pasadena e Eureka em 1905, São Francisco em 1907, todas foram
adotando as mesmas ferramentas.
O Movimento Progressista dividiu-se em duas linhas aparentemente
conflitantes no âmbito municipal. Uma procurava dar mais poder aos
eleitores, com primárias e as demais ferramentas de democracia direta, e
a outra, nascida meio por acidente, empurrava no sentido oposto, de
substituir políticos eleitos por executivos dispensados da obrigação de
seduzir eleitores para exercer funções públicas. Nasceram assim os
“governos de comissão”, que até hoje são a opção da maior parte das
cidades americanas. Galveston, Texas, arrasada por um furacão em 1900,
criou o modelo. A prefeitura mostrou-se incapaz de restabelecer a ordem e
a cidade determinou, então, que uma comissão de especialistas
acumulando poderes executivos e legislativos fosse nomeada para comandar
a reconstrução. Funcionou tão bem que ela continuou no poder pelo voto a
partir de 1903. Não demorou muito e Houston, Dallas, Fort Worth, Austin
e El Paso adotaram o modelo.
As comissões consistiam em cinco a sete administradores eleitos em
pleitos não partidários, cada um com poderes sobre uma área das
atividades do governo municipal (obras públicas, segurança, finanças,
saneamento, etc.). O sistema convivia com os mecanismos de iniciativa,
referendo e recall.
Mesmo debaixo de uma enorme celeuma por colocar uma distância maior
entre executivos e eleitores e ferir o sentido republicano prescrito
pela Constituição nacional, de governo de representação e separação dos
Poderes, o modelo foi-se espalhando como uma febre, imposto com as
ferramentas da iniciativa e do referendo por munícipes cansados da
corrupção e da ineficiência dos políticos.
Novas combinações foram sendo experimentadas ao sabor dos acidentes de
percurso. Daytona, Ohio, quase destruída por uma grande enchente em
1913, elegeu cinco especialistas que indicaram um manager para
executar suas deliberações. Berkeley, em 1921-22, assolada por uma
crise financeira arrasadora, do tipo Rio de Janeiro, tentou outra
variação de convivência entre poderes executivo e legislativo de seu council e
respectivos executivos. Ao cabo dessas e outras experiências, dois
modelos principais acabaram por se consolidar. Nos governos de council-mayor,
uma comissão é diretamente eleita e tem poderes para deliberar as
políticas, votar desapropriações, estabelecer objetivos e nomear um
profissional para aconselhá-la e executar suas políticas. Nomeia também
um prefeito com funções apenas cerimoniais entre seus próprios membros
(rotativo em alguns casos, diretamente eleito em cidades maiores). Já o
modelo de city-manager se
inspira mais diretamente no modelo corporativo. Um conselho eleito
nomeia uma espécie de CEO, que, por sua vez, nomeia uma “diretoria” para
executar as políticas do conselho em cada área de especialização. As
leis mais importantes, de qualquer maneira, propostas pelo povo ou pelos
legisladores, vão a voto direto.
O objetivo é profissionalizar a gestão pública e torná-la tão ágil
quanto o resto da economia privada. Quem não desempenhar perde o
emprego, dispensando-se processos políticos. Esse modelo, hoje, é usado
em 40% das cidades americanas de porte médio para baixo.
O país migrou, portanto, de um sistema totalmente amarrado ao princípio
representativo e à política partidária para outro libertado do apego a
falsos critérios de coerência ideológica e regido exclusivamente pela
conveniência prática, que mistura à invenção política dos “pais
fundadores” a eficiência da gestão corporativa inventada por seus
empresários, tudo mediado por ferramentas que dão poder absoluto ao
eleitor. O sistema representativo puro sobreviveu intacto só no nível
federal. No municipal e estadual, embora toda a reforma tenha começado
para defender o povo da ganância dos robber barons,
o povo também reconheceu o progresso induzido por eles e do qual era
beneficiário. Tiveram a inteligência de impor-lhes um freio por cima (a
legislação antitruste), mas, ao mesmo tempo, institucionalizar o que
tinham feito de bom (as técnicas de gestão).
Desde então os americanos têm sido absolutamente inflexíveis em manter
nas mãos dos eleitores o direito de propor diretamente ou dar a última
palavra sobre as leis que se comprometerão a seguir, mas recorrido à
contribuição de especialistas dispensados da obrigação de seduzir
eleitores para desenhar as melhores possíveis, permitindo-se errar
quantas vezes for preciso nessas tentativas até chegar ao melhor
resultado... que não hesitam em alterar mais adiante se novas
necessidades assim recomendarem. Trocam peças defeituosas (recall)
e reescrevem suas leis sem nenhuma cerimônia. São absolutamente
flexíveis na porta de entrada para dar eficiência ao sistema, mas mantêm
estritamente nas mãos dos eleitores o controle da porta de saída.
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