Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Vinhetas de outono

Valentina de Botas:

No fim de uma dessas adoráveis manhãs inaugurais do outono de luz singular, eu caminhava pela região da Paulista, ia almoçar com amigos que trabalham numa editora para ver a possibilidade de um trabalho, quando ouvi no rádio de um carro que passava acordes únicos, primorosos. A inesperada vinheta de outono fala de um que garoto vivia com a mãe num casebre miserável nos cafundós da Louisiana, era quase analfabeto e tocava guitarra diabolicamente; a mãe profetizou: você será o líder de uma banda, as pessoas virão de longe para te ouvir e teu nome brilhará no letreiro –  Johnny B. Goode esta noite.
Neste domingo, muitos brasileiros marcharam por outras vinhetas numa pauta caleidoscópica: defesa da Lava Jato, não à lista fechada e ao financiamento público de campanha, fim do foro privilegiado, repúdio à mal denominada anistia do caixa 2, alguma coisa que não entendi direito sobre o estatuto do desarmamento, reformas “justas” que acabem com “privilégios”. Me parece contraproducente ir às ruas com essa pauta inconsistente e os adeptos da súcia tentarão aproveitar-se da eletricidade para artificializar uma crise que os infle e vulnerabilize o governo que, para eles, sempre será malvado ou ilegítimo se não for um governo deles.
O primeiro sucesso de Chuck Berry, o sensacional construtor do rock falecido há alguns dias e cujo lume reluz em todo pop que presta, não é a minha música preferida dele, mas é ela que navega por lonjuras cósmicas nas pequenas Voyager 1 e 2. Em 1977, elas partiram levando, a quem interessar possam, registros com saudações em várias línguas; sons da erupção de um vulcão, do mar e das vozes de animais; e músicas. Lançar no espaço amostras do que somos testifica nossa solidão existencial na fantasia de não apenas sermos encontrados, mas também compreendidos; pois não é a incompreensão a forma absoluta de solidão?
A polarização que cindiu o país atinge as instituições, vê-se pela arenga de Gilmar Mendes e Rodrigo Janot. Perante a compulsão legislativa anticonstitucional da maioria dos ministros do Supremo e a estridência do debate no qual só não se ouve a razão, simpatizo com a coragem de Mendes em iluminar aspectos relevantes disso-tudo-que-está-aí atropelados pela tônica cega de terra arrasada. Desta vez, abordou serenamente o vazamento da lista do Janot, feito por procuradores obrigados por lei ao sigilo funcional. Janot anulou a delação de Léo Pinheiro numa atitude tempestiva, pretextando o vazamento havido; ora, Mendes somente levantou a mesma possibilidade numa situação similar.  Deltan Dallagnol entrou de sola declarando que a anulação “não tem pé nem cabeça”, sem mostrar onde estão o pé e a cabeça do descarte da delação de Leozinho.
A quem gosta de não gostar de Mendes lembro que, em agosto de 2015, o procurador-geral jantou com Dilma Rousseff depois que Gilmar Mendes, então vice-presidente do TSE, demonstrou à PGR que indícios ligando Dilma ao que ela estava umbilicalmente ligada exigiam uma auditoria nas contas da campanha de 2014. O procurador-geral desprezou a recomendação exortando “os derrotados a aceitarem o resultado das urnas”. Aparentemente, pensava que Mendes e os investigadores da Lava Jato tinham disputado as eleições.
Esquecendo-se de que não fugira naqueles tempos “dos círculos de comensais que cortejam desavergonhadamente o poder” e despreocupado com “a decrepitude moral” de não investigar o agora eviscerado mecanismo espetacular pelo qual o PT nos roubou para pagar a Odebrecht para que ela pagasse a reeleição, Janot acusa Mendes do que ele mesmo fizera. O chilique na desproporcional resposta liquida a razão que o procurador-geral nunca teve, mas também avisa que a coisa já deu: ambos precisam saber que respeito é bom e os brasileiros gostamos, nós que lhes pagamos o salário não precisamos ser expostos a mais essa baixaria institucional que só ajuda a bandidagem. Tenham algum decoro, senhores, e vão trabalhar!
Meus amigos se desculparam por não terem nada para mim, brindei ao outono e àquela luz, a Chuck Berry e ao país. Dois de nós quatro iriam à manifestação, acham que político-é-tudo-igual e estão revoltados com a possibilidade da lista fechada. Mas se são-todos-iguais, percepção que o vazamento nutre, tanto faz lista fechada ou aberta, não? A renovação política será progressiva e consistente se fizermos a reforma política-eleitoral com voto distrital e financiamento privado. Todos os delatados devem ser investigados e responder pelo que fizeram, mas lamentarei se se provar algo contra os tucanos citados porque os acho os melhores administradores na história recente.
Por favor, sem essa de que Fernando Henrique Cardoso preparou o terreno para a escória petista. FHC preparou o país para a modernidade. Os crimes de Lula e Dilma são gozosa escolha de Lula e Dilma; a percepção contrária a esse fato é miragem que iguala quem ergueu o Brasil a quem o afundou. Me pergunto quando a lucidez a dissolverá demonstrando que a ocasião não faz o ladrão, mas este é que a faz; que o criador e a criatura abjetos delinquem independentemente da ocasião. Ora, a dupla abjeta instalava o petrolão enquanto se investigava o mensalão. Teria a investigação preparado terreno para o petrolão? Francamente.
Sou contra o financiamento público de campanha, mas o privado está vetado pela cegueira ideologizada do STF. Quanto à lista ser fechada ou aberta, cabe perguntar qual a cor do cavalo branco de Napoleão. A lista, aberta ou fechada, será sempre a dos caciques. Numa, eles decidem os candidatos que poderão ser votados, noutra também. Ah, mas na aberta o eleitor escolhe diretamente em quem votar. É? Pelo coeficiente eleitoral, só 34 dos 511 deputados federais se elegeram com votos próprios, os outros 477 não seduziram o eleitor, mas os campeões de voto de cada partido cuja votação ultrapassou o coeficiente têm o excedente transferido a correligionários e até a partidos coligados. Assim, elegem-se, pela lista aberta, candidatos e partidos sem voto. Portanto, a lista fechada, que traz, sim, o nome dos candidatos – ao contrário do que dizem os incendiários da desinformação – e na ordem em que os votos do partido serão distribuídos, confirma o que a aberta não evita: a cor do cavalo branco de Napoleão é branca.
Importa a defesa da Lava Jato sobretudo porque, depois de Lula e Dilma tentarem explícita e objetivamente obstruir a justiça (e ele ser identificado como chefe do gangsterismo de Estado), ambos permanecem chafurdando na liberdade e – nem têm foro privilegiado! –, assim como o bandido-com-blog Eduardo Guimarães que admitiu a Sérgio Moro ter feito o mesmo. A lei deveria ter prevalecido e não merecemos ver soltos os comandantes da nossa ruína tramando voltarem para concluir o desmanche do país. Isso é a maior ameaça à Lava Jato, ao que ela nos deu e à trilha árdua que começamos a abrir para longe do abismo a que o PT nos trouxe.

Na despedida, confirmei que não iria à manifestação. O que você vai fazer, quanto a trabalho, querida Valentina? Johnny B. Goode costumava se sentar debaixo de uma árvore perto da linha do trem para tocar guitarra e os passantes se admiravam – esse garoto toca mesmo. Sigo tocando minha guitarra, sem sonhar com o estrelato como Johnny e, enquanto é outono, aprecio esta luz e a minha música preferida do gênio que foi morar nas estrelas. 
























extraídadebolgdeaugustonunesopiniaveja 

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