por Erica Gorga O Estado de São Paulo
Celebrados três anos da Operação Lava Jato, o patrimonialismo permanece, mais do que nunca, arraigado entre nós. Aliás, pode-se agora intitulá-lo de “petromonialismo”, que consiste na não distinção entre os desvios de dinheiro público e privado no “petrolão”, e da persecução, pela Lava Jato, somente dos crimes que atentam contra o primeiro, mas não dos que atentam contra o segundo.
Conforme dados de fevereiro de 2017 do site da operação (A Lava Jato em números), os crimes investigados compreendem “corrupção, crimes contra o sistema financeiro internacional, tráfico transnacional de drogas, formação de organização criminosa, lavagem de ativos, entre outros”. São também citadas “acusações de improbidade administrativa”.
Analise-se a natureza dos crimes listados pela própria Lava Jato como os mais representativos dos seus esforços. Corrupção ativa enseja “oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público” (artigo 333 do Código Penal). Já corrupção passiva é a conduta praticada por quem recebe vantagem indevida em razão da função que ocupa (artigo 317 do mesmo código). Assim, primariamente, os crimes de corrupção ativa e passiva relacionam-se a condutas espúrias praticadas nas relações com funcionários do Estado.
A lavagem de dinheiro, segundo o artigo 1.º da Lei 9.613/98, refere-se à ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização ou propriedade de valores provenientes de infração penal, a qual determinará a natureza desse crime. Se a lavagem de dinheiro provém de corrupção ativa ou passiva, também é relacionada a valores pagos a funcionários públicos ou por eles recebidos.
Os crimes contra o sistema financeiro internacional na Lava Jato abrangem os próprios crimes de lavagem de dinheiro relativos à corrupção ativa e passiva de agentes do Estado, já que os recursos muitas vezes se encontram no exterior.
O tráfico de drogas está na origem da operação, que detectou o desvio de intitulados “recursos públicos” pelos doleiros que lavavam dinheiro do tráfico (lembre-se a Range Rover dada por Alberto Youssef ao ex-diretor da Petrobrás Paulo Roberto Costa, conectando, pela primeira vez, o nome da empresa às atividades criminosas). Do mesmo modo, os crimes de formação de quadrilha referem-se à associação de três ou mais pessoas com o fim de cometer os crimes citados.
Os atos de improbidade administrativa listados na Lei 8.429/1992 também tratam do enriquecimento ilícito de ocupantes de cargos da administração pública, direta ou indireta.
Em síntese, a conclusão é evidente: a Lava Jato tem-se restringido a investigar e punir, grosso modo, as pessoas que praticam os tais crimes tipificados contra o patrimônio tido como público.
Acontece que o dinheiro desviado no petrolão não pertence apenas ao Estado brasileiro. A União Federal, apesar de acionista controladora, é proprietária de apenas 28,7% do capital acionário da Petrobrás, sendo a maior parte dele detida por acionistas privados. A Petrobrás protagonizou a maior oferta pública de ações do mundo em 2010, quando angariou cerca de R$ 45 bilhões de acionistas e investidores privados nacionais (inclusive via FGTS) e internacionais, para projetos de expansão e exploração do pré-sal. Tais valores depois foram desviados da companhia (e, portanto, dos acionistas privados) em operações fraudulentas e pagamento de propinas.
Porém, no petromonialismo da Lava Jato, os crimes praticados contra a poupança privada investida na Petrobrás e o sistema financeiro nacional não foram ainda punidos, nem sequer são investigados. São negligenciados inúmeros crimes previstos na Lei 7.492/86 cometidos pelo acionista controlador e por diretores da Petrobrás, incluindo a divulgação de informações falsas, gestão fraudulenta, indução do investidor a erro e manutenção de contabilidade paralela à oficial, entre outros. São também olvidados os crimes de manipulação de mercado e uso indevido de informação privilegiada, previstos na Lei 6.385/76. Por que a operação não foca os crimes praticados contra o sistema financeiro nacional, ao invés de se restringir aos praticados contra o internacional?
A Petrobrás é sociedade de economia mista e, no que tange às obrigações e aos deveres para com acionistas privados, por lei, segue o regime das demais sociedades anônimas privadas, segundo o artigo 235 da Lei das Sociedades Anônimas. Mas, na esfera do ressarcimento dos danos da atividade criminosa, o petromonialismo acaba por disseminar para o grande público a confusão entre o patrimônio público e o privado, gerando o mantra repetido pela opinião pública de que “o dinheiro desviado deve retornar ao Estado ou aos cofres públicos”.
Noticiou-se que apenas cerca de R$ 661 milhões foram devolvidos até agora pela Lava Jato à Petrobrás, enquanto se fala da recuperação de mais de R$ 5 bilhões pela operação. É necessária absoluta transparência da Lava Jato sobre o destino de todos os valores recuperados. Nenhum dinheiro desviado da Petrobrás (e, portanto, dos investidores privados) pode retornar diretamente à União Federal ou aos “cofres públicos”, pois não se trata de “dinheiro público”. Se obras contratadas pela Petrobrás (e com investimento dos seus acionistas) foram superfaturadas e empreiteiras receberam valores muito superiores ao preço justo de mercado, tais valores devem retornar à companhia e, depois, ser destinados à reparação das vítimas finais, os acionistas e investidores lesados. Urge criar mecanismos como os fair funds americanos, que possibilitam o destino de recursos das multas e acordos de conduta ou leniência aos reais prejudicados. Só assim os investidores recuperarão a confiança no mercado de capitais brasileiro, tornando viável a retomada econômica do País.
* ÉRICA GORGA É DOUTORA EM DIREITO COMERCIAL PELA USP, PROFESSORA (MPGC-FGV) E ADVOGADA EM SÃO PAULO, LECIONOU TAMBÉM NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT E FOI PESQUISADORA NASUNIVERSIDADES STANFORD E YALE
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