Ruth de Aquino: Epoca
É pavoroso o crime de omissão de sucessivos governos no cenário natural mais belo do mundo
Esses apartamentos inacabados na Vila Olímpica não são nada para mim.
Nada, diante da grande vergonha, de dimensões planetárias, que é a
catástrofe ambiental do Rio de Janeiro. É pavoroso o crime de omissão (e
provável desvio de verba) de sucessivos governos estaduais no cenário
natural mais belo e majestoso do mundo. Pelo menos o crime está sendo
exposto para o mundo. Viva a Olimpíada!
Além de carioca, sou militante desta Cidade Maravilhosa, nasci em
Copacabana quando “arrastão” nada mais era que pescadores chegando com
suas redes à areia coalhada de conchas e tatuís, peixes brilhando ao
sol, águas cristalinas. Quando o Rio de Janeiro foi escolhido sede dos
Jogos, em 2009, concorrendo com Madri, Tóquio e Chicago, vibrei. Era o
momento de investir com seriedade. A adesão do povo foi impressionante:
85% queriam muito que o Rio fosse escolhido. Ingenuidade? Otimismo? Uma
pesquisa da revistaForbes com 10 mil pessoas em 20 países acabava de eleger o Rio como “a cidade mais feliz do mundo”.
Meu artigo, há sete anos, parafraseava Barack Obama no título: “Sim, nós
podemos”. Escrevi que cobraríamos o cumprimento de promessas porque
estávamos “cansados de testemunhar falcatruas e projetos megalomaníacos
que enchem os bolsos de políticos e são inúteis para a população”.
Confiava em “uma virada” se houvesse “planejamento e responsabilidade”.
Nesse balneário com vistas de tirar o fôlego e clima ameno, havia três
desafios a ser confrontados com a garra de atletas que buscam o ouro no
pódio: a despoluição da Baía de Guanabara, a segurança pública e a
infraestrutura urbana, com transporte adequado. Sabíamos como Barcelona
havia aproveitado a oportunidade para se tornar um polo internacional de
turismo. Por que não o Rio?
Até o prefeito Eduardo Paes me contradiz agora. Para o jornal inglêsThe Guardian,
ele disse que “sim, nós perdemos”. “Esta [Olimpíada] é uma oportunidade
perdida para o Brasil. Não estamos nos apresentando bem. Com todas
essas crises econômicas e políticas, com todos esses escândalos, não é o
melhor momento para estar nos olhos do mundo”, comentou, mas também
reclamou de exagero nas críticas. “Isso me deixa louco. Se você ler os
meios de comunicação internacionais, parece que tudo aqui é zika e
pessoas atirando umas nas outras.”
Torcemos para a Olimpíada dar certo, em paz, sem ataques terroristas,
sem assaltos a delegações e turistas, sem mortes de inocentes. E que
sejam contornáveis os problemas na organização. Já nem são medalhas a
nossa prioridade.
Um legado da Olimpíada talvez seja o reconhecimento de nosso vexame
maior: as águas imundas e poluídas do Rio. Especialistas em saúde deram
aos nadadores e velejadores um conselho. Fiquem de boca fechada para
evitar doenças com dejetos, lixo, bactérias, rotavírus. “Os atletas
estrangeiros estarão literalmente nadando em m... humana e correm o
risco de adoecer por conta de todos aqueles micro-organismos”, disse ao
jornal The New York Times Daniel Becker, pediatra carioca.
No ano passado, almocei com o governador Pezão e mencionei o fracasso de
seu compromisso de despoluir a Baía até a Olimpíada. “Ruth, isso também
é exagero do pessoal. Tem uns sacos boiando, uns pneus... a gente vai
conseguir limpar.” Em 2014, ele dizia que a meta era ter 80% do esgoto
tratado. Mas empurrou a meta com a barriga. Nas águas da Baía, há
geladeiras, sofás, resíduos químicos de fábricas, óleo dos petroleiros.
E, volta e meia, cadáveres.
Só pode ser gozação chamar de “ecobarco” aquele troço que faz papel de
Comlurb na Baía de Guanabara, retirando toneladas de “lixo flutuante”.
“Ecoboat” e ecobarreira não são nem paliativos. A 11 dias dos Jogos, foi
retirada uma geladeira da água. Lars Grael, medalhista olímpico nas
Olimpíadas de Seul e de Atlanta, disse que será “uma competição de vela
com obstáculos”. Seu diagnóstico, em dia sem chuva: “Bastante sujeira,
muito óleo na superfície e detritos. Plásticos, latas, engradados.
Imagina, em plena regata, essa quantidade de lixo prendendo no casco da
embarcação”.
Não foi por falta de planos bilionários ou de doações internacionais.
Até ajuda do Japão o Rio já teve. As instalações de tratamento de esgoto
são abandonadas ou sofrem vandalismo. As bombas param de funcionar e
fica tudo por isso mesmo. Foi é por falta de vergonha.
Muita gente culpa “o brasileiro”, esse povo sem cultura ambiental. É
verdade. Mesmo brasileiro com doutorado não sabe cuidar do lixo ou sai
emporcalhando as praias. Mas o buraco é muito mais embaixo. Mais de 100
milhões de brasileiros não têm saneamento básico. Metade da população do
país não tem coleta de esgoto! Depois da Olimpíada, talvez mude a
cultura ambiental. É só a gente não ficar de boca fechada.
EXTRAÍDADEROTA2014BLOGSPOT
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